Iara Amina - Final
Hoje, sete da manhã, depois de quase ano e meio, fui correr na praia.
A
última vez que isso aconteceu, em abril ou maio do ano passado, torci o
tornozelo e mesmo depois de recuperado não encontrei ânimo para retomar às
corridas rotineiras.
Até
então, eu corria do canal 4 até a Plataforma do Emissário e retornava, um
percurso de quatro canais ida e volta, aproximadamente 6 km, trotando a um
ritmo de 160 batimentos.
Nesta
manhã, usando uma máscara de tecido, consegui correr do canal 4 até o 3, só
ida, na chegada, caminhando como um figurante do “Walking Dead”, desabei na
mureta do canal e, ofegante, gastei um tantão de tempo buscando impedir o
coração de escapulir pela boca.
Desta
vez não levei o frequencímetro, mas posso afirmar que ele seria inútil, pois
bateria o fim da escala.
Apesar
disso, enquanto semidesfalecido, eu tentava aspirar o máximo de ar que
transpassasse a bendita máscara de tecido, a brisa marinha com gotículas
salitradas umedeciam a parte exposta do meu rosto.
Senti-me
satisfeito e, sabe-se lá o porquê, meus pensamentos voltaram para a madrugada
em que ouvi a estranha história da ainda mais estranha e exótica Iamina.
-0-
− Ai meu caraco! - mãos na cabeça e sem entender nada Manolo ainda
completou - que porra é essa!?
Embevecida com a deslumbrante presença, Salu retrucou:
− Ih Manolito! A mona, tem um filho, um rapagão lindo por sinal.
Qual o problema?
E antes que Manolo respondesse, Barbra retornou seguida pelo filho
e com o semblante preocupado explicou:
− Me desculpem, mas acho que terei de cancelar o show desta noite!
Roger que a tudo acompanhava e tanto quanto Salu demonstrava estar
encantado com a figura exuberante de Barbra, intercedeu:
− Cancelar o show!? Não diga isso! – e pegando sua mão com
delicadeza, completou - Por que cancelar o show?
Surpreendida por aquele gesto, Barbra voltou-se para Roger e a
troca de olhares que se seguiu foi suficiente para mostrar que entre os dois
uma combinação química os conectou quase que instantaneamente. E, tentando se
recuperar ela respondeu:
− Acontece que a noiva do Tavinho, meu filho, nos surpreendeu, ela acabou
de desembarcar em Guarulhos vinda da Inglaterra e o nosso carro está fazendo
revisão e...
Puxando a mão de Barbra para junto de si num gesto quase teatral,
Roger interrompeu:
− Não se preocupe, eu levo Tavinho até Guarulhos com meu carro.
Enquanto isso quero que você espalhe sua luz e ilumine esta noite. Mas uma
coisa vou pedir, que não termine a apresentação antes de meu retorno.
Diante de tanta ternura, até Manuela se encantou com o clima de
romance entre Roger e Barbra. Recuperada do susto causada pelo exame de
mamografia, ela aconchegou-se nos braços de Manolo e falou:
− Ai Manelito, como é bonito ver um casal assim, tão apaixonado quanto
nós!
Amolecido pelo abraço forte e carinhoso da mulher, Manolo concordou,
mas ainda um pouco encafifado, completou:
− Ui meu tesourinho, é bom mesmo, principalmente vendo que você
está melhor. E tenho que reconhecer que esses dois, a dona Roger e o seu Barba
formam um casal bem acertado.
Satisfeita com o clima de romance que tomara o Bar Atlântico, Salu
sorveu uma dose dupla de macieira e sentindo o doce ardor do conhaque, fez
gestos de abano com as mãos e rematou:
− Ui, ui, que ver essas coisas me dá uns calores, eu fico toda
suadinha!!
Justamente nesse momento, arfando e carregando uma pesada caixa
acústica, Helinho Bico Doce ia passando e, percebendo a excitação de Salu, aproveitou:
− Ô Saluzinha querida, teu amorzinho aqui também tá molhadinho de
suor, aproveita e baixa aquela breja bem gelada, vai!!
Fazendo um bico de desdém e fulminando o Bico Doce com um ferino olhar
de soslaio, Salu respondeu enigmática:
− Tá molhadinho é? Pois pede pra Melequinha apagar bem esse teu fogo
querido, e te cuida porque o que é teu tá bem guardado!!
Depois de ter se despedido do filho e ter se comprometido a não
encerrar o show antes do retorno de Roger, Barbra, mais aliviada e até
entusiasmada retornou ao centro do salão e dirigindo-se ao casal Manuel e
Manoela perguntou:
− Ufa! Ainda bem que as coisas foram resolvidas e agora eu
gostaria de me preparar para a apresentação, onde fica o camarim?
Mostrando-se surpreso com a pergunta e fazendo um muxoxo, Manolo respondeu:
− Bem seu Barba...
E delicadamente foi interrompido:
− Meu nome de batismo é Adolfo, mas renasci como Barbra, Barbra
Strada, o senhor não precisa me chamar de dona ou seu, apenas Barbra.
− Ora pois, entendi! Bom então seu, quero dizer, então Barba, a
nossa bodega não tem camarim e...
Desta vez foi Manuela quem interrompeu:
− Ô Manolito, não ouviste o que ela falou, é Barbra! – e se
desgarrando dos braços do marido, a portuguesa apontou para Salu e completou –
Pois então Barbra querida, nós não temos um camarim, mas a Saluzinha aqui tem
um cantinho na despensa que pode servir para você se preparar, tem lá uns sacos
de batata aqui, um engradado de cerveja ali, umas coisitas acolá, mas acho que
servirá bem, não é Salu?
Entusiasmada por poder servir aquela que já se tornara sua ídola, Salu
se adiantou toda satisfeita:
− Mas claro Manelita, deixa que cuidarei dela com todo carinho. Então
vamos querida!
Mas, no momento que Salu e Barbra faziam menção de sair do salão, puxando
uma mala de rodinhas e ofegante, Leleca surgiu e chamou:
− Barbra! Barbra Espere!
Alertada, Barbra se voltou surpresa. Então, Leleca cochichou algo
em seu ouvido e em seguida mostrou uma mensagem no celular. Demonstrando
surpresa, Barbra reagiu inconformada:
− Não, a Tina! Mais essa, e agora?
Balançando a cabeça, Leleca entregou a mala de rodinhas para
Barbra e antes de retomar o trabalho de arrumação do palco, completou:
− É o que há para hoje querida! Toma, aqui são as coisas dela.
Resoluta, Barbra concordou com um gesto e seguiu Salu que
ingressara na cozinha.
Ultrapassando a cozinha, nos fundos do bar, um cômodo utilizado
como despensa armazenava vários produtos e num canto dessa despensa havia uma cadeira
metálica junto à uma mesa meio capenga também metálica, as duas gravadas com o
logotipo da Brahma quase encoberto pela ferrugem, e sobre a mesa uma caixa de
sapatos repleta de produtos de beleza como batons e esmaltes variados, rouge,
delineadores, lápis de sobrancelhas, base e pares de cílios postiços. Na parede
caiada de um amarelo desbotado, pendurado e meio torto um pequeno espelho
refletia a luz amarelada da lâmpada que pendia dum fio no meio da despensa.
Já acomodada, a estrela do show procurou acalmar Salu que se
mostrava envergonhada e tentava se desculpar pelo o acanhamento do lugar:
− Querida, deixa disso, já tive que trocar minha meia-calça nos
banheiros mais sebosos do Baixo Augusta, saiba que esse teu cantinho é muito
arrumadinho e mais confortável que os muquifos que ainda hoje frequento. Por
isso, não se acanhe, estou satisfeita.
Aliviada
e percebendo a preocupação de Barbra, Salu se encantou ainda mais com sua diva
e mais relaxada, perguntou:
−
Agradeço a compreensão, mas o que a preocupa, o que aconteceu?
−
Ai menina, a Tina Lollobrigida, não vem pro show.
−
Tina Lollobrigida!? Como assim?
Fazendo
gestos sobre os seios, Barbra respondeu:
−
a Drag que faz a abertura do meu show, a Tina Lollobrigida, ela tem as pernas
da Tina Turner e os peitões da Gina Lollobrigida.
−
Sei, sei. Mas o que aconteceu, por que ela não vem?
−
Parece que ela se envolveu numa briga com um grupo de skin head num beco da
Baixada do Glicério.
−
Meu Deus, ela deve estar muito machucada, coitada!
−
Não querida, tenho pena dos sujeitos que se meteram com a ela, os
rabo-de-arraia daquelas pernas são letais, parece que dois ou três dos Carecas
foram internados e a mona tá em cana por agressão.
−
Nossa, essa Tina é das minha! Mas e agora, o que você vai fazer?
Como
se tivesse encontrado a resposta e, ao mesmo tempo, revirando as vestes brilhantes
do interior da mala de rodinhas, Barbra sorriu enigmática quando ergueu uma
escandalosa bota com um imenso salto plataforma, toda recoberta com escamas
prateadas e dirigindo um olhar enigmático para Salu, perguntou
−
Querida, qual o número do seu pezinho?
-0-
Aquele
dia foi o último que o Bar Atlântico da Avenida Kenenedy dos portugueses Manolo
e Manuela, famoso pelas coxinhas da Salu, abriu as portas. Alguns meses depois,
no lugar foi inaugurado a Long Beach Paradise: la cage aux folles, boate com nome e sobrenome de propriedade do casal Roger Vadão e Barbra Strada.
E,
naquela última noite a Salu das coxinhas se separou definitivamente do Helinho
Bico Doce, após, é claro, ter dado uma surra no coitado que ficou escangalhado
por três dias. A partir daí, Salustiano incorporou magistralmente seu novo
papel, renasceu para o mundo como uma magnífica e brilhante drag queen mestiça
de Deusa Afro com entidade nativa, uma Drag Tupinambá batizada por Barbra
Strada de Iara Amina, ou para os íntimos Iamina.
Epílogo
Subitamente
um chamado vindo do quintal obrigou meu anfitrião a interromper a narrativa e
sair para atender alguém. Hipnotizado pela história e desperto pelo café forte,
voltei minha atenção para o lugar em que me encontrava,
Como
já relatei, a casa de Iara Amina se apresenta semiacabada sem reboco externo,
como de resto são muitas as casas sem reboco externo em comunidades como o
Caieiras, mas o que a torna tão singular quanto a proprietária é o formato
cúbico e o pé-direito alto da construção plantada no centro de um grande
terreno arborizado, localizado num ponto mais afastado e próximo a maré. A
escuridão do local não me permitiu ver os detalhes da área.
Essa
construção que me pareceu uma torre tem um interior surpreendentemente amplo e
agradável. E enquanto meu anfitrião se entendia com um visitante, descobri num
canto do salão uma pequena estante e mais uma vez fui surpreendido, empilhados
nas prateleiras do móvel identifiquei dois clássicos, “Dom Quixote” e “Madame
Bovary” além de uns pocket books do Edgar Allan Poe e clássicos da literatura
de autores como Herman Melville e mais impressionante ainda um exemplar
bilingue de “Folhas de Relva” de Walt Whitman.
Com
atenção focada na rica biblioteca, não notei o retorno de Iara que, sem
esconder a satisfação, perguntou:
−
Então, companheiro, o que achou do meu pequeno tesouro?”
Como
se estivesse sido surpreendido cometendo uma falta, me engasguei ao responder:
−
Ops, desculpe a bisbilhotice, mas impressionante o que você tem aqui”
Minha
surpresa foi ainda maior quando Iara me mostrou um conjunto de cadernos repleto
de textos e explicou:
- Minha
avó era analfabeta, mas era uma excelente contadora de histórias, muitas das
histórias que contava, falava dos nossos ancestrais. Um dia, ela apareceu com
um caderno – mostrando uma brochura bem gasta completou – este aqui, e pediu
que eu escrevesse o que ela iria contar. Com as histórias de minha vó,
preenchi duas brochuras como essa, mas acabei pegando gosto por escrever, então decidi ler boas histórias para poder também escrever tão boas como as que minha vó contava – abrindo uma gaveta abarrotada com mais
cadernos completou – Daí acabei montando esse meu pequeno acervo.
Então,
foi assim que conheci Iara Amina, autora de alguns contos que publiquei na
PEIXEVOADOR, minha pequena editora, uma Drag queen tupinambá que se apresenta
na LONG BEACH PARADISE: la cage aux folle, boate com nome e sobrenome da P.G. localizada numa esquina da Kennedy.
Nota:
esse texto começou a ser escrito na semana passada, nesta manhã
quando conclui e publiquei o post, corri do canal 4 até o três ida e volta.
Digo isso porque, apesar do tempo embaçado e o coração ainda querendo dar umas
escapulidas, feito um zumbi daquela série, balangando os braços, feliz como se
estivesse saciado de carne fresca, CHEGUEI!!
Sensacional, Bira!! Parabéns!! Assim como numa franquia de filmes, finalmente chegou o último lançamento para amarrar todas as pontas e esclarecer as dúvidas! Abração!!
ResponderExcluirÓtimo que você tenha gostado Sanford, abraços
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