Isolamento

  • Nestes tempos pandêmicos meu costume de dormir e acordar cedo chegou ao limite. Ainda claro me recolho, leio algumas páginas dos livros da cabeceira e, com a vista cansada, apago a luz para forçar o sono, após rolar pra lá e pra cá, durmo. Já não sonho, ou pelo menos não lembro mais dos sonhos, meu sono é um quarto escuro. As três e tantas, não consigo mais, os olhos não querem mais forçar o sono, os pensamentos gritam e não me deixam dormir, desisto e me levanto.
  • Mecanicamente, abro a porta e saio para a pequena varanda. Depois de me esquivar das rasantes dos morcegos que visitam o bebedouro com água e açúcar que sempre completo atendendo seus reclamos, confirmo que o mundo não acabou. 
  • As três e tantas da madrugada, a luz amarelada que se espalha pela rua arborizada e vazia passa uma dupla impressão, paz e solidão. A paz do silêncio próximo e a solidão dos ruídos distantes, como o troar potente da sirene dos cargueiros deixando o porto, o claque-claque e os silvos metálico das composições se arrastando no cais. Paz e solidão.
  • Com prazer, sinto sobre a pele dormida o ar friozinho da madrugada e driblando os morceguinhos que me veem como um intruso, aguardo por alguns minutos até a passagem do guarda noturno em sua pequena mobilete. Com um tótótó melancólico seguido a cada instante de uma buzininha de alarme ele embala o sono da vizinhança oferecendo uma falsa sensação de segurança.
  • Algo do meu corpo que funciona bem é meu intestino, um relógio, o banho matinal avisa todo o resto do início de um novo dia, ainda distante da claridade, mas um novo dia. Depois de descer o saco de lixo, preparo o café e faço uma pequena refeição assistindo os canais de notícias. Como ultimamente só tem notícia ruim, tenho trocado essa programação por séries que costumo acompanhar, não maratonar, um capítulo por dia apenas. 
  • Em seguida venho para onde estou neste momento e passo a escrever. Nos dias de aula, preparo em PowerPoint a matéria, nos dias sem aulas, escrevo coisas como este texto. Escrever tem sido minha forma de romper o isolamento. Isolamento que por sinal eu sempre vivi, uma marca característica minha. Ocorre que, por ter passado a maior parte do tempo na rua ou pelo menos fora de casa, nunca tive tempo para refletir sobre o porquê. Até então, estar envolvido numa atividade qualquer sempre me permitiu não pensar na solidão.
  • Provavelmente, essa é a questão, Nestes tempos de pandemia, isolamento, home office, lockdown, o isolamento carrega em si o perigo de, num mundo tão compartilhado por redes sociais como esta que estou utilizando, percebermos o quão solitários e não solidários somos.

Comentários

  1. A solidão têm muitas faces, para algumas pessoas eh felicidade, para outras tristeza... Mas em tempos de pandemia a solidão aumentou...

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    1. Concordo que a solidão nalguns momentos é positiva, mas nunca devemos esquecer que somos seres sociais e nossa sobrevivência como espécie mesmo depende dessa importante condição, a convivência social fraterna. Obrigado e abraços

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  2. Muito interessante. Creio que este seja o momento, ou já estejamos atrasados para refletir sobre e vida, sobre autoconhecimento.
    Seu texto é importante pois nos faz refletir sobre nosso cotidiano e por motivos diversos, não nos damos conta de como o dia passou e não percebemos, de como o dia passou e não nos percebemos.

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    1. O problema é que a vida cotidiana que nos é imposta atende muito mais a um sistema estruturado na exploração dos indivíduos e estes indivíduos, nós e o nosso tempo. Assim, preocupados em sobreviver somos impedidos de, ao menos, refletir sobre o que seria viver.

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  3. Ter rotina, é uma maneira de agradecer por cada dia que tú levantas e podes recomeçar um novo dia, agradecido por tudo que tens recebido até hoje.

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    1. Desculpe, para mim, ter rotina é uma forma de sobrevivência e, francamente, não acho que sobreviver é lá grande coisa, prefiro viver. Abraços e obrigado pelo comentário

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  4. Depois de vivermos uma vida no automático, temos o livre arbítrio de nos conhecermos melhor... mesmo que seja neste momento tão difícil!

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    1. Concordo, algo de positivo que podemos tirar disso que estamos vivendo é, entre outras coisas, essa possibilidade que você cita. Aquela história, desse limão, pelo menos a limonada. Valeu e abraços

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  5. Nesses tempos pandêmicos não vejo mesmo como não olhar para a solidão...
    Pode ser um dia, pode ser apenas o momento de um dia, mas ela volta e meia aparece. E nem sempre é de todo ruim para mim, mas às vezes ela vem acompanhada de uma melancolia indefinida, uma falta de sentido em tudo, uma vontade de interagir com o mundo de novo, mas de verdade, para além das redes sociais.
    A rotina fica até engraçada de vez em quando, porque, de repente, perde o sentido...
    Foi, ou é, uma mudança forçada de perspectiva, eu diria...

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    1. Acredito que essa tua melancolia Nat é um sinal positivo de vida, teu incômodo, tua inaceitação a essa situação é sinal de resistência. Somente os fortes se atrevem a resistir. Valeu e abração

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  6. “O mundo não acabou” e nem há de acabar, temos muito o que viver ainda !

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    1. Oi Dé, legal e positiva essa tua afirmação, mas não esqueça que, para os mais de trezentos mil indivíduos que morreram e os tantos que infelizmente ainda morrerão, o mundo acabou sim. Por isso, em respeito a estes, devemos aproveitar esse momento que com certeza vamos superar, nos isolar e aproveitar esse isolamento para refletir sobre nossas atitudes e ações. No mas, valeu e abração.

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  7. Concordo!
    Eu particularmente, sogro muito com o confinamento, isolamento e principalmente por estar distante das pessoas que amo.
    Me reinventando a cada dia e tentando, fazer a minha parte.
    Feliz em saber que pessoas escrevem coisas tão lindas e verdadeiras.
    Parabéns 👏

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    1. Com certeza esse teu sofrimento será compensado em breve, quando superarmos essa situação e você será abraçada pelo amor represado daqueles que te amam. Valeu, se cuida e abraços

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  8. Compartilho algumas atitudes suas como minha, pois dormir pouco, acordar cedo, fazer o café, jogar o lixo entre outras rotinas sempre fizeram parte da minha vida desde os meus 18 anos, hoje aos 61 anos, recém aposentado no meio de uma pandemia e tendo que adiar alguns projetos. Tenho me colocado no lugar das pessoas e de suas angústias, entendendo o quanto somos egoísta com nossos problemas e dificuldades.

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    1. Fico feliz com seu comentário, pois, apesar de se confessar egoísta, vejo que você é dotado de duas grandes virtudes, primeiro a da autocrítica e a segunda, a mais valiosa, a da empatia. Acredito que as pessoas que portam tais virtudes tornam esse mundo melhor. Fique bem e um abraço.

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