De(u)scrença


 

Comecei a ler um catatau dumas 500 páginas em letras miudinhas dum desses autores pouco conhecidos que ganhou o Nobel anos atrás*, pra variar o sujeito é judeu. Antes de tudo, quero deixar claro que além de Gói sou um bugre marrano e ateu que admira muito as histórias e respeita igualmente as crenças de todos os descendentes de Abraão, tanto os ismaelitas quanto os filhos diretos de Isaac.

E, sobre a leitura de "Amor e Exílio: memórias", bastava eu começar a ler e duas páginas depois caia no sono, sinal de que é um bom livro. Pode parecer estranho, mas livro bom pra mim é aquele que me faz sonhar, ou seja, me faz pegar no sono, quanto mais rápido eu durmo melhor é o livro, pois livro ruim, ao contrário, me tira o sono. Entretanto, a questão não é essa, quero falar de fé, ou melhor, da falta de fé que é o meu caso.

No início do livro, uma autobiografia, o autor Isaac Bashevis Singer,  filho de um rabino polonês do segmento chassídico, ou seja ultraortodoxo, descreve o momento de seus questionamentos sobre a fé em Deus e nas revelações oferecidas pelas Sagradas Escrituras, isto teria ocorrido ainda na sua infância antes mesmo de seu Bar Mitzvah. Uma viagem instrutiva e interessante.

Com essa leitura, aprendi muito sobre a comunidade judaica.  Ao longo do livro, entre outras coisas, o autor explica que a diáspora judaica resultou em correntes diversas destacando-se entre estas os ultraortodoxos Chassídicos ou Hassídicos originários do leste europeu, os seculares ou sionistas da Europa ocidental, notadamente da Alemanha, os sefarditas ou marranos da Península Ibérica e os reformistas dos EUA. 

E isso por si já demonstrou o valor desse livro, pois após sua leitura fui instigado a mergulhar na fascinante história desse povo. E, vejam só, acabei descobrindo que meu sobrenome é genuinamente marrano, portanto, satisfeito com tal descoberta, orgulhosamente passei a me apresentar como um bugre marrano e ateu.    

Mas, voltando a questão da minha falta de fé, é o seguinte: sem a sofisticação e obstinação do garotinho polonês, meu ateísmo crônico e cada vez mais convicto também vem lá da infância. 

Entretanto, diferentemente desse ganhador do Nobel, o bugresinho que eu era duvidava da existência de Deus e dos ensinamentos dos homens de fé por questões digamos menos filosóficas e mais mundanas.

Pequeno ainda, eu justificava minha descrença por uma desavença ocorrida já em meu batismo. Segundo meu avô, o cura teria encrencado com meu nome pagão, (e agora sei que o padreco deveria se incomodar também com o sobrenome marrano), já daí peguei birra com as coisas relativas à fé e a igreja.

Mas em verdade, impressionavam-me de forma assustadora as imagens sangrentas da paixão de cristo desenhadas em quadrinhos pendurados na lateral da pequena capela de Nossa Senhora de Fátima onde todos os domingos eu era arrastado para o catecismo que nunca conclui. Adolescente, minha falta de fé se encorpou, mas ainda sem convicção, mais como uma rebeldia juvenil.

Adulto, não tive muito tempo para pensar e me preocupar com essa questão, retornei apenas três vezes a uma igreja, todas por obrigação formal, no casamento e nos batismos de meus dois filhos. Durante essa época. minha preocupação maior era de ordem prática, nada metafísica.

Hoje, dobrando a curva do sino, sou um ateu convicto. Mas é importante destacar que ser "ateu" não significa "não acreditar", ser "ateu" significa "não ter crença", em outras palavras, não ter religião. Afinal, acreditar é inerente a todo ser humano, categoria da qual, mesmo os ateus como eu se enquadram.

Porém, diferentemente do autor que coloca em dúvida sua descrença, prefiro discorrer sobre aquilo que creio: a natureza.

Acredito na natureza da qual fazemos parte, porém e por favor não confunda isso com o "panteísmo", não vejo a natureza como um ente de adoração. E, na natureza a questão não é o "Bem" e o "Mal" ou "Céu e Inferno", isto são questões morais, ou seja, fundamentalmente humanas, na natureza o fundamental é o "Certo" e o "Errado".

E, voltando ao livro, ao longo da leitura, essa questão é colocada através de citações que o autor faz reiteradamente dum filósofo chamado Spinoza. 

Ocorre que este sujeito, também judeu ortodoxo, que viveu no século XVII e foi expulso de sua comunidade por suas ideias muito avançadas sobre as sagradas escrituras e sobre a unicidade de todas as coisas, (avançadas até para os dias atuais, eu diria). 

Então fruto dessa instigante leitura, lá fui eu atrás dos escritos de Spinoza e posso dizer que fui arrebatado, entretanto esse será assunto de um próximo post. 

Mas, relativo ao que nos interessa aqui, descobri que esse grande pensador fundamenta a tese da imanência "Deus/Natureza", ao negar ou dessacralizar a figura de um Deus transcendente. Afinal, segundo Spinoza, o Deus é a imanência, aquela unicidade descrita pela própria teologia pelo seu caráter onisciente e onipresente. Nesse sentido, Ele está contido em tudo e tudo faz parte D’ele, inclusive nós, portanto nada é sagrado porque tudo é sagrado.

Dito isso, paro por aqui e, sobre a questão do ter ou não ter crença, concluo com meu verbo de arrogante bugre pagão: meu camarada, tu podes crer numa coisa, se fizeres o "Certo", independentemente de ser Bem ou Mal, tá tranquilo, tá favorável!! Mas, se fizeres o "Errado", também independentemente de ser Bem ou Mal, aí tu estás ferrado!!

* SINGER, Isaac B.; Amor e Exílio: memórias. Porto Alegre: L&PM, 2007.

Comentários

  1. Boa noite Mano... Agora já tô ansioso pelo posto de Spinoza...

    ResponderExcluir
  2. Nada é sagrado porque tudo é sagrado!

    ResponderExcluir
  3. Vc é o cara mais espiritualizado q conheço. Taí a prova.
    Tô lendo bastante sobre os hebreus, antes dos judeus e bem antes do Spinoza...
    Acho, pelos meus "calculos" e pelas minhas crenças q tu vens de lá.... :-)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ju, quando tu lê a Bíblia, saiba, o primeiro conjunto desses textos, os livros do Antigo testamento narram a história do povo Hebreu. Quanto a ser espiritualizado, isso contradiz a ideia de unicidade, pois pressupõe a dualidade corpo/espirito. Portanto, não creio que eu venha ou que eu vá para algum lugar, apenas sou o que sou.

      Excluir
  4. Muito interessante o texto Bira, vai bem ao encontro da ideia recorrente que eu, na minha imensa ignorância sobre o assunto, muitas vezes tive, a questão da unicidade. Acho interessante essa ideia de que não há nada externo sagrado....porque tudo é sagrado e somos todos parte disso. Aguardando o próximo post!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Nati, essa tua suposta "ignorância sobre o assunto" acredito que esteja relacionada exatamente ao medo de discutir a existência ou não disso que você coloca como "externo". Confesso a você que também tenho muito medo de pensar sobre esse assunto. Obrigado pela atenção e abração

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Conto de Natal

Iara Amina - Final

Ano Novo