Iara Amina

Cansado de ano e tanto de confinamento, mentalmente esgotado, madrugada dessas resolvi sair, espairecer, mas não queria ter que utilizar a máscara e ciente dessa obrigação abandonei a ideia duma caminhada até a praia, resolvi pegar o carro.

Passava das duas, as ruas estavam completamente vazias, mesmo a avenida da praia, um deserto. Sem destino certo, me deixei levar pelo caminho que há mais de vinte anos percorro e, como se estivesse no piloto automático, atravessei a Divisa, peguei o Tapetão do Itararé, depois o Gonzaguinha e de repente estanquei solitário no vermelho do semáforo da Ponte Pênsil.

Não tenho ideia quanto tempo demorou pro verde aparecer e eu cruzar a barulhenta e centenária ponte, nunca nesses vinte anos percorrendo esse caminho deixei de me encantar com o visual da ponte, do lagamar do Mar Pequeno dum lado e da Baía de São Vicente do outro. Uma bela visão, por isso também nunca reclamei da espera nesse semáforo.

Rápido, retomando o rumo, lá estava eu acelerando na Via Expressa, também totalmente vazia e, provavelmente despertado pela torsão na direção ao entrar no viaduto para acessar a Manoel da Nóbrega, resolvi que era hora de retornar e decidi fazer o caminho de volta pela Kennedy também completamente vazia.

Novamente no piloto automático, segui por essa extensa avenida com a cabeça mergulhada em pensamentos que agora não lembro até que ao superar a faixa elevada em frente ao Campo da Aviação, senti um forte solavanco, um pneu furou. Encostei o carro e apesar ou até por causa do lugar deserto fiquei um pouco preocupado. Mas, sem alternativa, me dispus a fazer a troca do pneu.

Então, como um presságio, ao sair do carro, uma forte lufada de vento carregado de areia vindo da praia atravessou o imenso descampado da antiga e abandonada pista de pouso e atingiu meu rosto como uma chicotada. Junto com a areia, o vento trouxe também uma densa névoa que tomou conta da avenida transformando o ambiente num cenário de filme estilo "noir". Nesse instante, fui tomado por uma sensação de estar sendo vigiado, meu corpo se arrepiou todo, mesmo assim procurei manter a calma e me dispus ao trabalho.

Resignado, tentando me convencer de que estava só, busquei no porta-malas as ferramentas e após afrouxar os parafusos da roda aprumei o macaco para erguer o veículo, mas um craque metálico junto com a manivela rodando em falso me fez arrepiar novamente, o dispositivo tinha quebrado.

Envolto pela densa névoa e ainda com a estranha sensação de que não estava só, mantive-me agachado com as duas mãos na cabeça pensando numa solução quando uma estranha luminescência colorida passou a se refletir no ar esfumaçado. Hipnotizado pela cintilação colorida cada vez mais intensa, não percebi a aproximação da estranha figura, somente atentei para sua presença quando sua voz grossa ecoou:

“Viça, deu ruim companheiro!”

Assustado, voltei-me e me deparei com uma árvore de natal cintilante duns dois metros.

O sujeito vestia uma roupa de tecido metalizado furtacor, com um adereço na cabeça cheio de estrelinhas coloridas de led que piscavam sem parar, sua altura exagerada era devida a uma bota de cano longo, também de material metalizado, com um salto plataforma de uns dez centímetros ou mais. A pele preta era indefinível no rosto por conta da carregada e bem delineada maquiagem. Sem entender nada, surpreso com aquela aparição, emudeci.

Notando meu espanto, a figura indefinível, corpo sinuoso, gestos e vestes femininas, porte, vozeirão e atitude masculinas, assumiu o controle da situação, se adiantou e, com quase nenhum esforço, escolheu um ponto reforçado do para-lamas, ergueu o veículo o tanto suficiente para que o pneu pudesse ser retirado e ordenou:

“Aí companheiro, agiliza e troca a bagaça!!”

Mais surpreso ainda, eu fiquei após o término do serviço, quando, da mesma forma que surgiu a figura estranha se dispôs a seguir seu caminho apenas rematando:

“Valeu e se cuida aí ô figura!”

Imediatamente, o sujeito tomou seu caminho desaparecendo na névoa.

Seguindo o rastro de luz colorida e o toque-toque do salto plataforma que ecoava pela avenida vazia, precisei correr para alcançar a árvore de natal piscante que se afastava muito rapidamente. Quando o alcancei, ofegante falei:

“Ufa!! Espera, um momento!!!.........Espera!!! você me ajudou, pelo menos eu posso retribuir dando uma carona”

E foi assim, no auge da pandemia, numa madrugada com clima de filme de suspense, na Kennedy deserta que conheci a Drag Tupinambá Iara Amina.


"Uma questão: vale a pena eu continuar essa história?"


Comentários

  1. Adorei!!! Me vi percorrendo o percurso junto com você. Continue, o que aconteceu depois?

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    1. Opa, bom saber que você gostou, estou trabalhando a continuação e assim que postar aviso. Então, obrigado e abraços

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  2. Percorri contigo o caminho... O que houve depois?

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    1. Oi Camila, legal ter você na carona, estou trabalhando a continuação, assim que postar aviso. Abraços e obrigado.

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  3. Gosto de fazer a travessia SV PG por essa ponte também...
    Vale a pena continuar essa história sim!

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    1. Pois saiba que essa travessia sempre me lembra que somos ilhas e que é fundamental entender a engenharia de construir pontes. Estou trabalhando a continuação da história, obrigado e abraços.

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  4. Boa! Continua sim, a drag merece.

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    1. Em nome da Iara Amina, agradeço e adianto que essa narrativa é apenas uma apresentação, logo isso ficará claro. Valeu e abração.

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  5. Curiosa com o resto da história! Abração!

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    1. Ôpa!! Tô trabalhando a continuação e assim que postar dou um toque. Obrigado e abração Nati.

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  6. Curioso que sou, abri o Google Street View e percorri parte do trajeto virtualmente para conhecer e "me ambientar".
    Mas tchêêêêê!! Começou, agora termina, por favor!! hahahahaha
    Abração, Bira!!

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    1. Oigalê!! Gauchão bravo dos Cuiabás, inda um dia, com essa Harley posuda irás atravessar esta ponte chiquitita pero mui hermosa. Valeu Sanford, estou trabalhando os finalmente e assim que postar te aviso. Abração

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  7. Boa tarde Bira. Adorei a história!! Vou aguardar a continuação. Abraço.

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    1. Opa, bom saber que você está gostando, combinado, aviso assim que postar a continuação. Fica bem e abraços

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  8. Bora continuar. Massa tudo isso.

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