MERITOCRACIA - 2


 01

Desde o início da administração do alcaide de Pindorama, Jaime Bolgarovich, a narrativa oficial centrou-se no projeto “Em defesa da Família e Homens de Bem”, nesse sentido dois projetos se transformaram no objetivo principal de seu mandato: a construção do Cemitério Municipal e o aparelhamento da Guarda Municipal.

Segundo o alcaide:

─ O conforto dos mortos e a segurança dos vivos são pilares do progresso e da prosperidade de Pindorama, por isso precisamos canalizar todos os recursos e esforços nessa grande obra.

Acontece que “Recursos”, ou melhor, a “falta de recursos”, passou a ser sua principal preocupação.

O aumento crescente no número de reprovações nas séries iniciais do Ensino Fundamental, exigiria o emprego da totalidade da verba destinada para a Educação com o aumento do número de salas de aulas, contratação de professores e funcionários, isso impediria o desvio das verbas dessa área para os projetos na área de Segurança e na construção do cemitério

  Assim, o discurso do alcaide J.B passou centrar sua narrativa nessa direção:

─ Precisamos melhorar nossa educação, reinstalar a ordem e a disciplina, para isso vamos otimizar os recursos. Uma administração disciplinada e eficiente na Educação contribuirá para restabelecer os valores morais que fortalecerá a família tradicional e tornarão nossos filhos homens de bem.

Para esse esforço disciplinador, o alcaide Jaime Bolgarovich nomeou como Secretária da Educação Dona Garmelita, a Primeira-Dama.

Cristã fervorosa, Dona Carmelita adotou nas escolas pindorantinas a Pedagogia da Fé, editou uma espécie de catecismo que distribuiu aos professores e professoras para que servissem de fundamento pedagógico a ser aplicado em sala de aula.

Segundo tal pedagogia, os alunos seriam tratados como rebanhos de carneirinhos protegidos por vigilantes professores, e estes deveriam atuar como pastores que conduziriam por um caminho seguro seu rebanho.

Entretanto, denúncias de favorecimento à uma gráfica com indícios de sobrepreços na produção das tais cartilhas obrigou o alcaide Jaime Bolgarovich a substituir a Primeira-Dama do cargo.

E, no seu lugar nomeou o diretor do Matadouro Municipal, um tal Lucas Khlopov como Secretário da Educação.

Estimulado pelo projeto modernizador da administração Bolgarovich, Lucas Khlopov se notabilizou pela radical reformulação dos métodos de trabalho e das instalações empreendidas no Matadouro Municipal, entre estas se destacaram a informatização dos relatórios de produção e a instalação de aparelhos de smart tv com telas de LED nas baias e currais onde os animais aguardavam o abate.

Segundo estudos, o efeito hipnótico da televisão acalma o gado e isso além de tornar mais digno o processo de abate também produz uma carne mais macia e livre de toxinas. Assim, enaltecido por tal sucesso, Khlopov o novo secretário assumiu seu cargo e as coisas começaram a acontecer.

Já, em seu discurso de posse, o novo Secretário da Educação de Pindorama deixou evidente qual seria o principal objetivo de sua administração.

─ A disciplina leva ao mérito!

Segundo o secretário, seria estipulado um conjunto de metas e, para que estas fossem alcançadas, a Secretaria da Educação implantaria um programa baseado na meritocracia cujo acompanhamento seria feito por um conjunto de indicadores. O prefeito Jaime Bolgarovich ficou muito satisfeito, ele adorava números e bois.

02

Porto Geral é um distrito do município de Pindorama e o Grupo Escolar de Porto Geral é a única escola do distrito. A rede escolar de Pindorama conta com quatro unidades escolares, três na sede e uma no distrito de P.G. Instalada num prédio de dois andares, a escola conta com nove salas, uma para cada série dos Ensinos Fundamental e Médio.

 No início daquele ano ocorreram várias reuniões entre diretores, coordenadores e professores das escolas de Pindorama e nessas reuniões foram expostos os índices e as metas que deveriam ser alcançadas pelas unidades escolares.

Com sua voz monótona, Dona Corinha detalhava as novidades administrativas no primeiro A.T.P.C. do ano. Pouco atentos, os professores acompanhavam a fala da coordenadora, mas a coisa esquentou quando ela anunciou que todos os servidores da secretaria seriam avaliados, teriam promoção por mérito e o bônus anual somente seria pago aos funcionários e professores das escolas que tivessem cumprido as metas estabelecidas pelo SASPR.

Então, o professor de biologia Carlos Esquisitus, um sujeito empertigado, calvo, com fala de ilhéu, interrompeu a fala da coordenadora.

─ Ó Dona Corinha! Mas que negócio é esse de SUSPRICIO?

Com sua fala mansa e sorrisinho de freira, D. Corinha pacientemente respondeu:

─ SASPR, seu Esquisitus! SASPR é o Sistema de Avaliação de Pindorama, elaborado a partir de provas aplicadas aos alunos.

E o professor com fala ilhoa retrucou:

─ Peraí ô Dona Corinha! Ainda não entendi, nós somos avaliados, mas quem faz as provas são os alunos?

Nisso, Ivan José Cerração, ex-alcaide e atual assessor da prefeitura, que participava da reunião, um sujeito flácido de pele escamosa e careca, interveio com seu modo pachorrento.

─ Isso mesmo, nossos alunos são nossa matéria prima, com o trabalho e empenho dos senhores professores agrega-se valor a esta matéria e ao final temos um produto acabado com conhecimento acumulado.

At é então calada, a professora de História Svetlana Fabíola, uma mulher alta e corpulenta famosa pelas surras que aplicava aos namorados, não se conteve e inconformada interrompeu:

─ Uma questão de ordem, Dona Corinha! Isso é coisa do imperialismo burguês. Administrar com estatísticas, tratar a todos como mercadoria. No fim, o que esse governo fascista quer é iludir e explorar a massa proletária.

Com sorriso sardônico e a careca brilhando de suor, o assessor Cerração tentou se justificar:

─ Veja bem, é uma forma justa e objetiva de avaliar o trabalho dos senhores, o aluno entra no Ciclo Fundamental I com zero de conhecimento, ao longo dos quatro anos desse ciclo acrescentamos uma quantidade X de conhecimento. Assim, quando ele ingressa no Ciclo Fundamental II ele apresenta um Grau X de conhecimento e deve sair desse Ciclo com um grau 2X de conhecimento e assim por diante, o SASPR vai avaliar essa evolução.

Incomodado com as interferências do ex-prefeito Cerração. O professor Esquisitus ignorou-o e se dirigiu ostensivamente a coordenadora.

─ Ó, Dona Corinha! E se os alunos não se empenharem ao fazer essa avaliação do SUSPRICIO?

─ É SASPR, Seu Esquisitus, SASPR! Quanto a isso, nossos alunos devem ser conscientizados e cobrados, eles devem levar a sério essa avaliação.

Passando um lenço sebento sobre a careca suada, o assessor Cerração interpelou novamente.

─ Veja bem, além das provas feitas pelos alunos, outros indicadores farão parte dessa avaliação, como as instalações da escola, o acolhimento aos alunos, a dedicação dos professores e muitos outros itens. O Secretário Khlopov vai monitorar e supervisionar cada unidade escolar da nossa rede, para isso nomeou um  Inspetor Geral.

03

Ressabiados, os professores do Grupo Escolar de Porto Geral saíram da reunião insatisfeitos e resolveram continuar a discussão no Copo Sujo do Mourinho, famoso pelo caldo de sururu.  A professora Svetlana Fabíola era a mais inconformada.

─ Esse fascista do Bolgarovich e seu Secretário Khlopov querem achatar ainda mais nosso salário. Não podemos aceitar calados essa imposição, vamos convocar uma assembleia e decretar uma greve geral.

Não menos incomodado e agitado, o professor Esquisitus retrucou.

─ Ó Svetlana, greve? Bobagem, nossa classe é desunida, ninguém vai apoiar essa proposta, além do mais, a greve vai ser festejada pelos alunos que ficarão sem aulas e seus pais vão dizer que é vagabundagem nossa.

Querendo acalmar os ânimos a coordenadora Dona Corinha falou com seu sorrisinho de freira e sua voz ainda mais amaciada pelo quebra gelo.

─ Calma gente! Não devemos ter medo da avaliação, somos competentes e vamos cumprir as metas, tenho certeza disso.

O professor de português, Ivanovich José Marcio, conhecido pelo porte atlético e protagonismo nos shows da boate “La Cage aux Folles”, também estava alterado.

─ Ai, gente! Mas é muito injusto ser avaliado pelo resultado de uma prova feita pelos alunos. Nossa escola é diferente das escolas da sede, lá é tudo organizadinho, tem uma unidade do Ensino Fundamental I, outra do Fundamental II e outra do Médio, tudo separadinho e bem bonitinho. A nossa escola não tem estrutura, comporta o Fundamental e o Médio tudo junto e misturado. Além de tudo, os alunos de Porto Geral são mais carentes, é injusto avaliar do mesmo jeito.

Súbito, todos se calaram. O professor de Matemática Nicolau Souvarine, sempre isolado e quieto, com seu hálito de vodca e voz sepulcral se manifestou:

─ Camaradas! Não devemos nos preocupar com as provas, somos professores sabemos como resolver essa questão. Mas devemos ficar atentos e preocupados com a monitoração, o Estado vigilante é cruel, devemos estar preparados para as visitas de inspeção, preparados para receber o inspetor.

Rosto quadrado, cabelos negros desgrenhados, bigodes também negros e bastos que lhe dava um ar soturno, Nicolau Souvarine era o decano do Grupo Escolar de P.G., apesar disso sabia-se muito pouco dele. Corria uma lenda dando conta que fizera parte do grupo de guerrilheiros que, no final dos anos 1960 atuou no Vale do Ribeira sob comando do capitão Carlos Lamarca. Ferido, o guerrilheiro teria se refugiado em Porto Geral, uma vila de pescadores naquela época, acolhido nunca mais deixou o lugar.

Calados e atentos, todos se dispuseram ouvir o que o enigmático professor de matemática tinha a propor.

─ Penso que provas objetivas para efeitos estatísticos são formas de legitimar mentiras convenientes.  Portanto, legitimo também é fraudar esse tipo de instrumento e isso não é muito difícil, o Estado é useiro e vezeiro nessa tática. Mas, o inspetor que virá supervisionar nosso trabalho, com esse é que devemos nos preocupar, noutras épocas um sequestro resolveria a questão, entretanto os tempos são outros, devemos nos preparar para recebê-lo

Excitada com os bigodes bastos e com as palavras do professor de matemática, a professora Svetlana não resistiu e questionou.

─ Concordo em sacanear com as provas, mas esse tal inspetor!? Não sabemos quem é, nem quando ele virá, como iremos nos preparar?

Mal a professora de História acabara de formular sua questão, o grupo foi surpreendido com a chegada da professora de Ciências Cinthia Andréievna. E, todos sabiam que quase em seguida chegaria seu marido Kantorovich Gilnilvióviski, o Diretor aposentado do G.E. de P.G.

Com um sorriso irônico, o professor Souvarine completou.

─ Acho que a resposta pra sua pergunta acaba de chegar.

Todos se voltaram para a professora Cinthia e, com o mesmo sorriso irônico, demonstraram compreender o que o professor de Matemática queria dizer.

Em Porto Geral, todos sabiam que a professora Cinthia tinha um caso com Armando Ukhoviórtov, o delegado de polícia. Também era de conhecimento geral que todas as intervenções da Administração Municipal no Distrito eram previamente analisadas por autoridades como o delegado Ukhoviórtov e o diretor aposentado Gilnilvióviski, por isso a professora de química conseguia ter informações da administração de PR antes de todos. Portanto, ela saberia com antecedência quando seria enviado um inspetor para fiscalizar o Grupo Escolar.

Minutos após a professora Cinthia Andréievna ter concordado em ficar atenta com relação a vinda de alguém da Secretaria de Educação, o diretor aposentado Gilnilvióviski chegou esbaforido.

─ Querida! Você demorou, fiquei preocupado.

─ Ui! Estava aqui Gilsinho!! Nós viemos pra cá logo depois do A.T.P.C.

─ Mas, o que houve querida, teus cabelos estão molhados?

04

 A tarde seguia modorrenta, calor castigando o pátio interior quando uma campainha soa e incomoda o professor de Educação Física Claudio Dóbtchinski, em meio a um lance decisivo, comeria três peças e completaria fazendo dama. Irritado, ele se dirige a um dos alunos que assistia a partida:

− Eicha!! Lucas, vai lá e abre o portão!

O Grupo Escolar não tinha quadra ou área externa, por isso as aulas de Educação Física se restringiam a jogos de dominó ou damas, vez que outra rolava um gol caixote.

Baixo, com ares de maus bofes e alguns fios oleosos tentando encobrir a calva proeminente, o funcionário da prefeitura entrou e imediatamente se dirigiu à Sala dos Professores. Portando uma prancheta onde fazia anotações, o inspetor surpreendeu o professor Ivanovich pregando lantejoulas prateadas no biquíni que vestiria a noite no show da La Cage Aux Folles.

─ Aaaai, que susto! – depois de respirar fundo, deixando a costura de lado, o professor de Português se recompôs e completou - Pois não, o que o senhor deseja?

De forma fria, sem dar atenção ao semblante preocupado do professor, o sujeito respondeu:

─ Estou fazendo anotações para o relatório de Inspeção. 

Avisada da presença do inspetor, Dona Corinha tentou acompanhar o sujeito que, sem pedir licença, se enfiava por todos os cantos do Colégio fazendo anotações em sua prancheta, mas os passinhos curtos da coordenadora não eram páreo para o ágil e mal-encarado funcionário, por isso desistiu e resolveu aguardá-lo na sala dos professores.

Em silêncio os professores foram se juntando em torno da coordenadora, estavam cientes de que a escola não havia se preparado para aquela visita. As salas de aulas sujas com carteiras e cadeiras quebradas, as paredes rabiscadas, a maior parte das torneiras dos bebedouros não funcionava, os banheiros dos alunos não tinham iluminação e estavam imundos, como a escola não tinha refeitório, os pratos utilizados na merenda estavam sujos acomodados em bacias plásticas num canto do pátio e ainda, os alunos, muitos maltrapilhos sem a camisa do uniforme e a sala dos professores atulhada de computadores, impressoras e aparelhos de televisão inoperantes. Desconsolados todos esperavam pelo pior.

O inspetor da prefeitura tinha um irritante tique, a todo instante fazia um movimento ríspido com a cabeça tentando jogar para a calva os sebentos fios de cabelo que insistiam em cair sobre a testa. Angustiados com a demorada pausa feita pelo homenzinho que finalizava suas anotações na prancheta, alguns professores passaram a repetir o irritante movimento, até que:

─ Lamento dizer que a Escola foi reprovada na inspeção, enquanto as medidas sugeridas em meu relatório não forem providenciadas ela constará da lista negra da Secretaria.

Quase sem fala, Dona Corinha viu que todos esperavam sua manifestação diante do sujeito empertigado. Com sua vozinha mansa a coordenadora atalhou.

─ Muito bem, senhor. Mas, quais medidas devem ser adotadas e...?

De forma arrogante, o funcionário da prefeitura não esperou Dona Corinha completar, entregou-lhe uma folha que arrancou da prancheta e imediatamente se retirou.

─ Aqui está, passe bem!

Pálida, Dona Corinha respirou profundamente e fez também uma longa pausa após ler o documento. Em seguida, voltando-se para os aflitos professores, leu em voz alta as recomendações.

─ Deverão ser lavados os pratinhos que suportam os dois vasos de Antúrio que ladeiam o portão de entrada da escola. Assinado Paulo Gomes Michka, agente do corpo de voluntários do combate a Dengue, subordinado a secretaria de saúde do município de Pindorama.

Continua....

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