MERITOCRACIA - 3


05

O Mourinho do copo sujo estranhou a presença dos professores, normalmente eles se reuniam na bodega as sextas-feiras, foi o professor Esquisitus que esclareceu.

─ Ó Mourinho! Hoje, a reunião é extraordinária, pois traga lá só as quentes e os tremoços.

Os professores estavam em polvorosa, a visita do inspetor voluntário da secretaria de saúde expunha as fragilidades do Grupo Escolar, excitados todos falavam ao mesmo tempo. E mais uma vez, todos se calaram quando o professor Souvarine tomou a palavra:

─ Camaradas, essa é a tática do Estado, vigiar e oprimir, é contra isso que devemos agir. Noutros tempos, alguns quilos de explosivo resolveriam a questão, mas estamos na era do virtual, não dá pra explodir o que não é real.

Excitadíssima não só com os bigodes negros do professor, mas também com a situação, a Professora Svetlana interpelou:

− Mas, agir como? Fomos surpreendidos e quase nos cagamos com a visita de um simples voluntário.

─ Contingência, Camarada Svetlana, com um plano de contingência.  Pra isso temos que identificar as deficiências da nossa escola e preparar uma ação que se execute num tempo recorde.

O professor Ivanovich que ainda dava os últimos arremates em seu biquíni resolveu entrar na discussão:

─ Gente, mas os problemas de nossa escola são estruturais, tão graves que somente podem ser resolvidos com ações sérias. Em várias reuniões pedagógicas nós levantamos e apresentamos tais problemas para Diretora Antónovna, pelo que sabemos, ela já encaminhou esses relatórios para a Seduc, mas nunca recebeu retorno deles.

Satisfeito com o rumo que a conversa estava tomando, o professor Souvarine, num gesto de efeito, apoiou o punho fechado sobre a mesa.

─ Muito bem colocado, camarada professor, mas sejamos pragmáticos, sabemos que essa administração não está interessada em atacar os problemas estruturais, os Bolgarovichs querem apenas apresentar números e ao fim mandar todos limparem os pratinhos que suportam os vasos de antúrios. Contra ações virtuais, medidas virtuais camaradas!

Em seguida Nicolau Souvarine expos seu plano. O silêncio que se seguiu a fala do professor de matemática foi a máxima expressão da concordância geral. Coube a professora Cinthia Andréievna quebrar a pausa

─ Ui, camaradinhas! Concordo em apoiar o plano do professor Souvarine, mas acho que devemos comunicar nossa decisão a Diretora Antónovna.

Imediatamente, todos voltaram a atenção para dona Corinha. A coordenadora, que entornava o quinto Steinhaeger, com voz pastosa remendou.

─ Seu Souvarine, quantos quilos de explosivos vamos precisar?

06

A Diretora Márcia Antónovna, vivia enfurnada em sua sala carimbando e assinando papéis. A propagandeada autogestão das escolas implantada na administração Bolgarovich era sufocada pela pesada burocracia imposta pela Secretaria da Educação que exigia relatórios semanais de tudo, desde a folha de ponto dos funcionários até as compras de material de limpeza. Com isso, raramente a Diretora tinha tempo para se reunir com os professores, a coordenadora Dona Corinha era sua porta-voz.

Entretanto, dado a gravidade da situação, dessa vez ela compareceu a reunião na sala dos professores e com muito tato foi informada do tal plano de contingência.

Com paciência e detalhes, Dona Corinha fez uma longa explanação introdutória e completou.

─ Por tudo isso, nós elaboramos o seguinte plano, as professoras de Artes Fevrônia Célia e Marisa Petróvna ficarão encarregadas de elaborar uma série de cartazes pré-montados fazendo alusões as principais festividades de cada bimestre, Páscoa no primeiro, festejos juninos no segundo, primavera no terceiro e natal no quarto, esses cartazes cobrirão as falhas das paredes do pátio. Já, os professores de Matemática Mitiko Sakaeroviski e Joseph Vodkarlos Orlof ficarão encarregados de produzir e manter um estoque de trabalhos, origamis e cartazes, supostamente feitos pelos alunos para cobrir as paredes rachadas e riscadas das salas de aulas, para isso a professora de inglês Nihon Paragauaióviski e o professor de Física Célio Ukhoviórtov construirão um sistema de varais em cada sala que permitirá a colocação rápida dos materiais, cartazes, origamis e painéis.

Citado por Dona Corinha, o professor Célio Ukhoviórtov pediu a palavra.

─ Cara Diretora Márcia Antónovna, prezados colegas professores, primeiramente gostaria de dizer...

Mas, abruptamente foi interrompido pelo professor Esquisitus.

─ Ó Célio! Depois tu falas, agora deixa Dona Corinha continuar a explicação do nosso plano.

Contrariado, o professor de Física se calou e Dona Corinha continuou.

─ O professor Dóbtchinski vai providenciar uma lona pintada de verde e demarcada como se fosse área de basquete para cobrir o chão junto à parede dos banheiros dos alunos onde será fixado um suporte de sustentação duma tabela com cesta de basquete removível.

O professor Claudio levantou a mão e interferiu.

─ A lona velha nós temos, mas vamos precisar comprar uma bola.

Concordando com a reivindicação, Dona Corinha continuou.

─ Também vamos precisar manter um pequeno estoque de chinelinhos e camisetas do uniforme dos alunos, para substituir as peças sujas e rasgadas de alguns deles durante a inspeção.

Como uma treinada e eficiente burocrata, a Diretora anotava numa agenda tudo o que ouvia e num dado momento murmurou.

─ Vou ter que fazer hora extra pra preencher tantas petições, ordens de custo e relatórios.

Tentando tranquilizar a Diretora, Dona Corinha completou.

─ Não se preocupe, querida, eu e a Professora Cinthia Andréievna vamos ajudar você com esse trabalho burocrático. E, pra completar, o professor Esquisitus e o professor Célio vão organizar o laboratório retrátil de físico-química.

Franzindo o cenho, demonstrando estranhamento, a Diretora interpelou.

─ Laboratório de físico-química retrátil? Mas, o que é isso? Não temos verba nem espaço pra montar qualquer tipo de laboratório e..

Novamente citado, o professor Célio Ukhoviórtov pediu a palavra.

─ Cara senhora Diretora, colegas professores, eu posso explicar. Primeiramente...

E novamente não conseguiu continuar, o professor Esquisitus interrompeu.

─ Peraí ó Célio! Tenha paciência, deixa que eu explico. É o seguinte, nós vamos utilizar a sala do terceiro ano que tem poucos alunos e têm duas portas, com isso da pra disfarçar em duas salas, quando o tal do inspetor vier, nós montaremos e desmontaremos o laboratório. È simples!

Ainda com o cenho franzido e mais espantada ainda a diretora insistiu.

─ Não entendi nada! E não temos verba pra conseguir material de laboratório.

Percebendo que o professor Célio ia tentar falar e o professor Esquisitus iria interromper novamente, Dona Corinha se adiantou.

─ Querida, não se preocupe. Não precisaremos de verba, o protético aposentado senhor Khristian Guibner alugou seu salão para um nissei montar uma temakeria, por isso ele teve se desfazer de seu equipamento e nos ofereceu um conjunto de vidrarias e ferramentas diversas. E, é isso, podemos dar andamento ao plano?

Ainda sem compreender bem a complicada explicação, mas sem identificar nada que se constituísse numa contravenção ao estatuto da escola, a Diretora anuiu.

─ Tudo bem, caros professores, considerando que as propostas ao final vão contribuir com nossa escola, eu concordo.

Satisfeitos, os professores aplaudiram ao mesmo tempo em que o professor Célio levantou a mão e pediu a palavra.

─ Cara Diretora, colegas professores, primeiramente queria dizer que...

Mas, o professor Esquisitus novamente interrompeu.

─ Pô Célio, chega! Já falaste muito.

07

O Mar Pequeno soprava um vento morno que balançava a cortina vermelha do pequeno quarto, súbito, a musiquinha do seriado Chaves ecoou na suíte da pousada Tic Tac assustando o delegado Ukhoviórtov. Com o dedo indicador nos lábios, a professora Andréievna pediu silêncio e atendeu o celular.

─ Alô! Gilsinho!? Que isso neném? Estamos em reunião, você sabe que não posso atender.

Do outro lado da linha, o Diretor aposentado se desculpou.

─ Perdão meu bombonzinho, mas só queria avisar que fomos convidados para o coquetel de lançamento do novo livro de Dona Garmelita, por isso estou indo ao Camiseiro Altamirando de Pindorama e devo voltar tarde.

─ Ai, Gilsinho! Mais um daqueles coquetéis sem graça? Tá bom, depois a gente se fala.

Nem bem a professora Andréievna desligou o celular, foi puxada de volta pra grande cama redonda pelo delegado. Com um sorriso maroto, ela o repeliu.

─ Ui, calma! Vamos poder ficar até mais tarde.

-0-

No dia seguinte, apertando o corpete, a professora Andréievna se lamentou com seu marido.

─ Diz pra mim, Gilsinho! Quantos livros essa Dona Garmelita já escreveu, eu não aguento mais ter que ir às noites de autógrafos e coquetéis de lançamento dos livros dessa velha.

─ Acho que esse é o trigésimo lançamento, ela gosta muito de escrever. Sei que você não gosta dessas cerimonias, mas para um homem da minha posição, afinal sou o Diretor honorário do Grupo Escolar, é uma obrigação participar desses eventos políticos e você, meu bombonzinho, deve sempre estar ao meu lado. E ai, gostou da minha camisa nova?

O diretor aposentado Kantorovich Gilnilvióviski tinha uma mania: camisas. Bastava ser convidado para um evento qualquer, ele reagia comprando camisas. Para os eventos mais corriqueiros, batizados, enterros, aniversários, jogo de bingo e outros, ele recorria à loja do turco Araújo na Galeria da Praia em Porto Geral. Mas, cerimonias mais importantes, como essa, um coquetel organizado pela mulher do alcaide Jaime Bolgarovich, ele fazia questão de escolher uma peça no Camiseiro Altamirando, uma butique tradicional em Pindorama.

─ Além do mais, meu bombonzinho, acho que o alcaide pretende anunciar em “petit comité” a nomeação das novas autoridades que farão o trabalho de inspeção nas áreas de saúde e educação aqui em Porto Geral. Alguma coisa a ver com esse negócio de meritocracia.

Mais interessada, a professora Cinthia Andréievna estendeu a mão enluvada e matreiramente insinuou.

─ Então, vamos lá “mon cher, à la Guillotine”, ao lançamento do trigésimo livro de Dona Garmelita.

-0-

Na manhã seguinte, a novidade se espalhou rapidamente, o inspetor já havia sido nomeado e estava a caminho.

─ Você tem certeza disso?

─ Claro que tenho, Corinha. Ontem durante o coquetel de lançamento do livro da Dona Garmelita, Gilsinho foi informado pelo próprio Secretário da Educação que um Agente Inspetor tinha sido selecionado para inspecionar as escolas de Pindorama e que o trabalho de inspeção começaria por Porto Geral.

─ Certo, então devemos ficar atentos para a chegada de qualquer forasteiro, vou avisar o professor Jonas Kuzmitch.



continua....
Link da Parte Final -
 https://peixevoadoreditora.blogspot.com/2022/03/meritocracia-final.html

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