Cigana

 


A expressão de espanto que a diretora fez quando entreguei meu pedido de exoneração, me lembrou o mesmo gesto de estranhamento da Doutora Lenira quando há quarenta e tantos anos, pedi demissão do escritório onde trabalhava como office boy.

“Meu filho, que isso??? Demissão? Mas por quê?”.

Acredito que foram estas as palavras que a Dra. Lenira falou. Porém, inesquecível foi a expressão de espanto dessa minha chefe diante da minha decisão.

Afinal, modéstia a parte, eu era um ótimo office boy, o melhor que aquele escritório tinha e todos sabiam que eu adorava ser office boy, conhecia todos os caixas de banco, todos os despachantes e, no alto da minha irresponsabilidade adolescente me sentia e agia como um rei andando pelas ruas do centro da cidade.

Não tinha tarefa que me incumbissem que eu não cumpria e fazia mais rápido que qualquer outro. Quando o pessoal do administrativo emendava a hora do almoço, eles sempre recorriam a mim para conseguir o mais sortido e encorpado "americano no prato" do Café Carioca, ou ainda o melhor "viradinho a paulista" que a bodega Bonsucesso poderia oferecer. Como office boy eu era o máximo, pena que a Cinthia não ligava pra isso.

Cinthia trabalhava no setor de compras. Anos mais velha que eu, ela era linda, uma princesa cigana, seus olhos e lábios eram arrebatadores, me hipnotizavam, eu arrastava um bonde por ela e sempre que retornava da rua trazia alguma coisa que deixava em sua mesa, uma flor ou um bombom ou, quando dava, um “mil folhas de chantili” da Planeta, Cinthia era louca pelo “mil folhas” da Planeta.

O sorriso de satisfação de Cinthia, quando eu colocava sobre sua mesa o que ela mesma chamava de mimo, valia qualquer esforço. Inúmeras vezes voltei a pé pra casa após ter usado a grana da condução com esses mimos. Apesar de cansado, eu retornava extasiado recordando o semblante satisfeito e agradecido dessa minha princesa cigana.

Nessas muitas caminhadas que fazia depois do trabalho, meus pensamentos viajavam em sonhos, eu planejava casar, morar num quarto e sala do BNH e ter um bando de filhos com Cinthia. O problema é que a Cinthia namorava com o Sérgio do financeiro, um varapau todo engomadinho que era muito conceituado em seu departamento, eu tinha a maior inveja desse sujeitinho.

Então, foi por causa da Cinthia e do Sérgio que eu resolvi pedir demissão, aconteceu o seguinte: incomodado em ver, ao final do expediente, a minha cigana sair de braços dados com o coxinha do Sérgio, resolvi investigar o que esse sujeitinho tinha que tanto encantava minha Cigana, foi quando descobri que o engomadinho era um ás na datilografia.

O figura batia umas tantas palavras por minuto na Olivetti Lexicon, a máquina virava uma metralhadora nas mãos do pulha. Sabe-se lá por quê, eu encanei que a minha princesa cigana era caída pelo cara por causa dessa habilidade pistoleira na máquina de escrever. Assim, decidi me igualar a ele e passei a gastar minhas duas horas de almoço batucando numa velha Olivetti Letera que ficava disponível no almoxarifado. Sem chance, minha catação de milho durou até o dia em que o casal, Cinthia e Sérgio, anunciou o noivado, minha raiva veio na forma de um inesperado pedido de demissão.

“Meu filho, que isso??? Demissão? Mas por quê?” – a doutora Lenira repetia com a cara aparvalhada.

 Era impossível dizer a ela que eu estava indo embora por causa da minha princesa Cigana que me trocou pelo varapau engomadinho do financeiro. Não falei, inventei uma desculpa qualquer e fui embora.

Passados quarenta e tantos anos, diante da minha diretora que espantada tentava entender por que eu pedia exoneração a situação se repetia, também era difícil explicar o motivo.

Difícil dizer a ela que no primeiro dia que ingressei na sala de professores daquela escola há quinze anos e me deparei com o aspecto deprimente dos meus colegas, eu tive já vontade de desistir e simplesmente nem assumir o meu cargo.

Difícil, também, dizer a ela que estive para requerer minha exoneração já há dez anos quando num intervalo do noturno me deparei com um colega professor esvaindo em sangue no pátio da escola ferido com um tiro no pescoço disparado por alguém que pretendia roubar sua moto.

Impossível dizer a ela que preparei, mas não entreguei meu requerimento pedindo a exoneração já há cinco anos quando tive de acudi-la na sala da coordenação após ela mesma ter sido agredida por um aluno da sexta série e ainda, em seguida, tive que socorrer em meu carro uma funcionária grávida que também fora alvo de agressão desse mesmo aluno.

Desnecessário dizer a ela que já não aguentava mais aturar as reuniões pedagógicas e os insuportáveis e semanais ATPC’s que mais pareciam reunião dos neuróticos anônimos onde todos falavam e ninguém escutava. Assim como não suportava mais ouvir as mesmas abjetas piadinhas onde os colegas professores destilavam seus rancores e mágoas fazendo circo de si mesmo e todos tal qual um bando de hienas riam seus risos esclerosados.

Sem entender o motivo que me levara a requerer minha exoneração, a diretora insistia:

“Mas exonerar? É loucura sair assim, você tem quinze anos de Estado! Exonerar, por quê?

Quarenta e tantos anos depois, diante da feição estupefata da minha chefe, finalmente eu confessei:

“Por causa da Cigana, da minha princesa Cigana!!!”



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