Conto de Natal

 Falando em tom de encerramento, completou o professor:

Do ponto de vista da Dialética hegeliana, o confronto entre as classes sociais trata-se dum fenômeno natural, entretanto do ponto de vista da dialética marxista, a luta de classes é determinada pelo sistema produtivo capitalista.

Deixando a sala de aula e correndo pra pegar o último "Butantan-USP", Josiel, em seu estado natural, ou seja, de inconformismo, pensava:

“burguesia do caralho, essa!”. 

E esbaforido, conseguiu se imprensar no vagão metálico do Metro na estação Barra funda que o levaria até a estação Sé e dali, se tudo desse certo, conseguiria pegar a também última composição que o levaria até o Jabaquara e finalmente o “bacural” do Rápido Brasil para Santos.

Passava das duas da manhã quando finalmente chegou na sobreposta do Macuco,, só depois do banho percebeu o bilhete na mesa da cozinha deixado pelo Otoniel, despachante aduaneiro e companheiro dos rachas na praia do Boqueirão:

“Passa no escritório amanhã, tenho uma parada legal pra ti”

-0-

Passando repetidas vezes os dedos indicador e polegar em pinça sobre a fronte, demonstrando indignação, Josiel reclamava com seu sotaque característico:

Meu Camarada, vai se fuder!! Tu acha que eu vou pagar pau pra essa festa burguesa, sai fora meu!!

Conhecendo o amigo, pouco se importando com sua reação, Otoniel insistia:

Deixa de frescura Josiel, tu tá precisando, é uma grana boa, trabalhinho fácil, duas horas por noite, das 20 às 22, três noites por semana. A Grana é boa meu!!

Meu camarada, não é questão de grana, é questão de princípio, Natal é invenção burguesa pra aumentar a exploração sobre o proletariado e concentrar ainda mais o capital e...

Conhecendo bem a verborragia do amigo, Otoniel interrompeu:

Vai tomar no cu Josiel, essa porra de Natal é uma parada que vem de antes da burguesia existir, não fode!! E quer saber, qual o mal? Tu vai fazer uns agrados e ainda levantar uns cobres pra poder continuar fazer esse teu curso lá na USP. Até o Marx teve que batalhar uns trocados pra escrever esse tal do Manifesto Comunista, vai dizer que não??

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Com a surrada bolsa tiracolo de couro, Josiel seguia pela Marechal Deodoro na direção do Shopping Miramar, ia devagar por estar adiantado e por não ter convicção de estar fazendo a coisa certa.

Na inseparável e surrada bolsa, além de um esboço de sua tese de mestrado inconclusa, havia restos de panfletos convocando "Greve Geral e Revolução Proletária Já", cópias xerocadas de capítulos inteiros do livro dois de "O capital" do Carlos Marx e ainda um volume repleto de anotações duma edição da Boitempo Editorial do Manifesto Comunista.

Apesar de considerar o lugar como um nefasto templo do consumismo capitalista, Josiel sentiu uma sensação boa quando ingressou no shopping Miramar e foi envolvido pelo ar frio e perfumado do ambiente.

Depois de tomar um expresso curto numa cafeteria enfeitada de luzinhas de led fabricadas na China comunista, resignado Josiel decidiu ir adiante. 

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Na hora marcada, josiel se apresentou à recepcionista da sala onde outros tantos indivíduos já aguardavam. Com voz suave e educada a jovem da recepção falou:

Ah sim! Senhor Josiel, pois não, o senhor pode se sentar e aguardar que logo será chamado.

Josiel se acomodou num canto da sala e, de forma reservada, deu um giro com o olhar tentando reconhecer os outros que já aguardavam a mais tempo. E nesse giro percebeu uma característica comum ao grupo, nove sujeitos, todos avantajados no peso, alguns obesos, a maioria de cabelos e barba brancos e amarelados pela idade, ele era o mais jovem, de barba escura e o único pardo do grupo.

Não demorou, surgiu um sujeito com um sorriso falso, que fez um cumprimento também falso e que agradeceu muito falsamente a presença de todos. Em seguida, de forma séria e sem nenhuma preocupação em manter o sorriso falso ele caminhou lentamente à frente do grupo sentado em fila e com o indicador em riste apontou:

Você..., você..., você...e você, me acompanhem!

Sem se preocupar em dar qualquer explicação aos que não tinham sido escolhidos, o sujeito se virou e retornou para o interior do escritório. 

Enquanto seguia o sujeito junto com os outros três escolhidos, Josiel percebeu a preocupação da recepcionista em dispensar de forma educada os cinco não escolhidos.

No interior do escritório, numa sala bem menor, o sujeito apontou para a escrivaninha onde estavam dispostos três documentos e foi direto:

Bem senhores, as condições de contratação já foram explicadas previamente, então por favor assinem o contrato e marquem com a menina da recepção o horário para o treinamento, Ok?

Quando dois do grupo escolhido já haviam assinado os contratos, o sujeito se voltou para Josiel e pediu:

Peço que espere um minutinho. – falou mostrando um quarto documento - Pois gostaria de ter uma palavrinha com o senhor, pode ser?

Após a saída do terceiro contratado, o sujeito de sorriso falso passou a falar tentando ser falsamente educado:

Bem como o senhor pode perceber, o senhor é o único diferente do grupo de selecionados, quero que entenda que isso faz parte da política de inclusão e cotas da nossa empresa e por isso existem algumas considerações que gostaria de fazer e....

Olhando com atenção para a cara do sujeito que com sua boca cheia de dentes destilava uma falação carregada de falsidade, Josiel pensava em duas respostas para dar àquele discurso:

“Mandar o sujeito tomar no cu ou arrebentar sua boca cheia de dentes”

Optou pelas duas.

-0-

E quando chegou pro racha na praia do Boqueirão, mal acomodou sua indefectível e surrada bolsa tiracolo junto a trave do gol que defenderia como goleiro do "Estrela do Macuco", Otoniel veio até ele e perguntou:

Então Josiel, deu certo a parada?

Satisfeito e aliviado, Josiel respondeu:

─ Que nada meu!! Deu ruim, os caras não contratam preto pra ser Papai Noel.

Feliz Natal, ho, ho, ho!!!

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Comentários

  1. Um conto de realidades... Uma bela crônica que retrata nossa indiferença.

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    1. Valeu !!!, obrigado pelo elogio e Feliz Natal Ho, Ho, Ho

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