Resolução de Ano Novo

 O banner pregado na porta entreaberta do estabelecimento era uma cópia em tamanho maior dos panfletos que Josiel distribuíra durante toda semana e continuava a entregar aos passantes. Entre os que educadamente aceitavam receber o panfleto, alguns reagiam de forma raivosa, depois duma rápida leitura eles os amassavam com força e se livravam do papelzinho como se nele tivesse um vírus contagioso.

Com o tempo, a calçada da Dr. Cochrane passou a ser ocupada por seres da noite, mulheres com vestidos colados ao corpo e o rosto emplastrado com uma maquiagem exagerada, que tentava, sem sucesso, esconder o obvio, que não eram mulheres. Incontinente, Josiel continuava sua saga de entregar a quem quer que fosse seu material de convocação e as mariposas da noite, com delicadeza forçada e oferecida, aceitavam de bom grado o panfletinho.

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Quando Josiel decidiu organizar a "Plenária", pensou na necessidade de um ginásio pra abrigar a multidão que, com certeza, responderia ao seu apelo. Porém, com o tempo, o comunista percebeu que não era pra tanto e se convenceu de que o salão de festa da Sociedade Amigos do Bairro do Paquetá em frente ao cemitério do mesmo nome seria suficiente.

Assim, naquele início de noite Josiel se postava ansioso à frente do salão da Rua Dr. Cochrane aguardando a chegada daqueles que, conforme a convocação, fariam parte da Plenária de fundação do PCB, o Partido Comunista da Baixada. 

Aos poucos a ansiedade foi se transformando em desânimo até que, puxando um carrinho lotado de papelão e outras tralhas, um grupo formado por très sujeitos e dois vira-latas se aproximou e o líder do grupo, o carrinheiro, desconfiado perguntou:

Então companheiro, que que tá rolando?

Contrariado, mas resoluto diante de suas convicções de que seria com apoio também dos “descamisados” que a Revolução aconteceria, Josiel entregou um panfletinho pro sujeito e explicou:

Camarada, aqui vai acontecer o início de um mundo novo, um mundo baseado na justiça, na igualdade dos homens - e empolgado continuou – um mundo em que os senhores serão respeitados como cidadãos e....

Mas a empolgação de Josiel foi contida pelo carrinheiro que interrompeu:

Tá certo companheiro, mas tem uma coisinha pra comer?

Hã!! De comer!? Tem sim, tem umas bolachinhas de água e sal e café – falou apontando uma mesinha com um pratinho e uma garrafa térmica no canto do salão.

Já entrando seguido pelos dois agregados e os vira-latas, o sujeito completou:

Tá, então a gente vai participar.

Surpreso, Josiel reclamou:

Peraí camaradas, cachorro não pode!

Imediatamente o carrinheiro fez meia volta e rematou:

Se meus bichinhos não entra, a gente também não entra!

Ainda mais surpreso com aquela reação, vendo o grupo sair, Josiel resolveu reconsiderar:

Tá certo camaradas, tudo bem, pode entrar com os cães.

Satisfeitos o grupo ingressou no salão e, com os vira-latas abanando os rabos festivamente, foram direto pro cantinho do café.

Esgotados os panfleto e convencido que a assistência daquela plenária seria formada por três moradores de rua e dois vira-latas, Josiel resolveu que estava na hora de iniciar a falação. Mas justamente nessa hora, Otoniel apareceu e já foi falando:

Que porra é essa Josiel?

Satisfeito por ver o amigo, Josiel voltou-se:

Ôôo meu camarada, sabia que você não ia deixar de participar desse grande evento e...

Olhando pro interior praticamente vazio do salão, Otoniel retrucou:

Grande evento? Não fode Josiel, só tô vendo uns maloqueiros e dois vira-latas, que grande evento?

A questão não é o número Otoniel, a questão é a decisão, compreende?

Tá, decisão, mas que decisão?

A questão é a seguinte meu camarada, deixei de teorizar a revolução, decidi ir para a ação prática, hoje vou fundar o Partido que vai liderar o proletariado na tomada do poder. "Práxis" Otoniel, ação e atuação pragmática mas sustentadas nas convicções.

Caralho Josiel, larga disso meu!! Essa porra de convicção não dá camisa pra ninguém. Pô, eu vim aqui porque tenho uma parada legal, um lance do Revillon e...

Nesse instante a conversa foi interrompida com a chegada de um grupo formado por duas senhoras idosas um casal adulto e duas crianças que se aboletaram nas primeiras cadeiras bem em frente ao palco improvisado no fundo do salão.

Reanimado com a presença do grupo, Josiel pediu desculpas ao amigo e se dirigiu ao palco para dar início aos trabalhos. E sob o olhar atento da assistência, inclusive dos vira-latas acomodados despachadamente a um canto, Josiel puxou da bolsa tiracolo o volume dois do Capital e deu início a falação:

Boa noite camaradas, antes de iniciarmos os trabalhos apresentarei a pauta...

Nesse instante, uma das senhoras idosas interrompeu:

Pastor, o senhor poderia dizer qual versículo que o senhor vai usar pra pregação?

A senhora vestida de forma distinta falou apontando pro volume que Josiel portava. 

Sem ter se dado conta dá confusão, Josiel ergueu o volume mostrando a capa ilustrada com o rosto do autor barbudo e foi surpreendido com a reação do grupo.

Vixe! Vai-te que é coisa do canhoto, te esconjuro, vamos gente, vamos!!

Sem esperar qualquer resposta e destilando imprecações, o grupo saiu apressado do salão. Em meio tumulto formado, o carrinheiro ergueu o braço e perguntou:

Tem mais bolachinha?

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Com o salão vazio, desolado Josiel se dirigiu ao colega Otoniel:

Qual é mesmo a parada do Reveillon que tu estavas falando?

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Enquanto matava um pastel de carne no Carioca, o comunista ficou sabendo pelo Otoniel que a empresa contratada pela prefeitura de São Vicente para fazer a queima de fogos do dia 31 estava com uma dificuldade:

Caralho Otoniel, eu sou comunista, não sou terrorista, não entendo porra nenhuma dessas paradas de explosivos.

Nada ver Josiel, a parada é outra, os caras entendem bem das pólvoras e dos fogos de artifícios, o problema deles é outro, tem a ver com o aparelho que programa os efeitos especiais da bagaça.

 Porra meu!! Piorou, porque entendo lhufas desse negócio de programação, de efeitos especiais e o escambau!

Peraí meu, se liga, vou explicar. Acontece que os caras importaram da China o aparelho que programa os efeitos especiais, daí que o manual tá todo escrito naquelas letras de pauzinhos dos caras e ninguém consegue entender como programar a bagaça e...

Otoniel, num fode pô!! Tu acha que eu sei ler mandarim?

Porra Josiel, tu não é comunista? Então, os chinas lá são tudo comuna daí que eu pensei que...

Pensou errado, sou trotskista, russo eu arranho, mas mandarim não entendo porra nenhuma.

Pena meu, a parada ia dar um cascalho bom, os caras estão desesperados e....

Enquanto Otoniel se lamentava, Josiel dava uma talagada na laranjada pra empurrar o pastel de queijo já meio passado. Foi nessa hora que o comunista teve o "insight" e abrindo um sorriso malicioso falou:

Opa, peraí, peraí, que eu acho que posso resolver a parada.

Caraca meu!! Diz aí como?

Seguinte!! Conheço um maluco do sindicato da estiva que é chegado na linha maoísta.

Porra Josiel e daí?

Daí que já peguei o maluco lendo o livrinho vermelho.

Livrinho vermelho? Mas e, e...?

Ai caralho, ô Otoniel tu é muito alienado meu!! Acontece que quem escreveu o Livro Vermelho foi Mao Tsé Tung porra.

Tá, e aí?

Puta que pariu, aí que o livrinho tá escrito em mandarim, quer dizer então que o maluco entende a porra do mandarim, ôôô!!

Caraca meu, então é isso, vai atrás desse maluco que eu vou acertar as coisa com o meu chegado lá da prefeitura.

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Pouco antes da meia noite do dia 31, o gerente da empresa produtora apareceu no container improvisado como sala de controle do show pirotécnico e perguntou:

Então pessoal, tudo certo?

Josiel que digitava alguma coisa no aparelho chinês respondeu com um sinal de positivo.

Olhando pro relógio de pulso, o gerente completou:

Então, daqui a dez minutos vamos botar fogo na bagaça.

Dez minutos depois, com a praia do Gonzaguinha lotada um rastro de fogo se lançou duma das balsas ancorada na baía de São Vicente e sob os olhares radiantes e radiosos de todos o céu foi iluminado com uma cornucópia de cores que a cada novo efeito era acompanhado de uma ovação de surpresa e admiração. Até que passado mais de quinze minutos da magia colorida, ao fim, os fogos desenharam em multicor um “Feliz 2024” e tudo se apagou.

Mas surpreendentemente, o espanto foi ainda maior quando, após uma pequena pausa, os fogos retornaram desenhando no céu uma foice cruzada com um martelo seguido de uma frase inscrita em letras gigantescas: 

"Proletários do Mundo Uni-vos!!"

От всей души поздравляю с новым годом!*



* Desejo-lhe um feliz Ano Novo com toda a alma!

 

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