Outdoor



Aconteceu em agosto, para ser mais exato numa fria e chuvosa segunda-feira de agosto, mês intruso e agourento.

Encharcada pela chuva fina, a avenida da Praia do Itararé estava com suas três faixas congestionadas. Imobilizados naquele engarrafamento de final de tarde, eu e um tanto de outros fracassados ansiávamos por chegar em casa. 

Agarrado ao volante como o náufrago a uma boia de salva-vidas, eu me deixava levar pela maré de veículos. Desorientado, mirava meu rosto refletido no vidro do para-brisa tentando gostar do que via, não conseguia.

Em pensamento me perguntava, quantos malditos agostos já havia passado e será quantos outros mais ainda enfrentarei? Aquele era apenas mais um agosto agourento que se repetia, frio e arrastado como a fila daquele, também maldito, engarrafamento. 

Em determinados momentos minha melancolia era superada pelo pavor, retumbantes trovões explodiam em seguida aos aterradores flashs dos raios, tenho muito medo de raio.

Provavelmente o final do mundo vai acontecer no entardecer de um dia como esse de agosto, com raios, chuvas, engarrafamentos e, com certeza, numa segunda feira.

Por causa da tempestade fui obrigado a fechar os vidros do velho Uno transformando-o num claustrofóbico sarcófago. Lá fora chuva e frio, no interior, desânimo e abafamento.

O carro se deslocava vagarosamente, alentava-me uma única esperança, topar com uma ilha salvadora em meio aquele oceano de buzinas e trevas.

... 

O Tapetão do Itararé tem duas coisas que chamam a atenção, os radares obrigando os veículos a reduzir a velocidade e grandes outdoors plantados no canteiro central.

Justamente um desses imensos cartazes eu entendia como minha desejada e salvadora ilha, o "outdoor do Corpus Motel”.

Este grande farol de propaganda projetava-se como um descomunal pôster mostrando uma morena deslumbrante de corpo escultural trajando uma lingerie negra que expunha toda sua vibrante beleza numa posição sensual.

Essa era a ilha que, ansiosamente, eu buscava avistar, mas esse bendito abrigo estava fora do meu campo de visão, inacessível, distante uns quinhentos metros de onde meu velho Uno estava paralisado.

...

Sempre que passava por aquela avenida, eu torcia pelo sinal vermelho do semáforo ao lado daquele magnífico outdoor. Durante o tempo que ficava aguardando a luz verde, não conseguia desviar o olhar da bela morena que me retribuía, com seu sorriso congelado.

Caso pudesse materializar um ideal de beleza, sem dúvida, seria ela, aquela mulher do outdoor do Corpus Motel, ela que sempre sorria oferecida pra mim. 

...

Mas, naquele sorumbático fim de tarde de agosto, a chuva caia insistente e, apesar do frio exterior, dentro do carro os vidros fechados tornavam o ar morno e insuportável.

Desesperado, eu queria sair dali, se possível pular aquele mês, superar o peso de enfrentar aqueles dias que se repetiam abafados e rançosos.

Como tais coisas eram impossíveis me satisfaria em, pelo menos, chegar rápido ao semáforo vermelho junto ao outdoor do Corpus Motel. 

Súbito, quando minha paciência havia se esgotado e já me dispunha a abandonar o carro seguindo a pé, a fila começou a mover. Arranquei e lentamente o veículo começou a deslizar, mas cego com o embaçamento do vidro resolvi abrir a janela lateral e agradeci o vento frio carregado com borrifos de água da chuva que chicotearam e gelaram meu rosto. 

Foi então que ouvi sua voz: 

-- Por favor, fecha as janelas, estou com muito frio. 

Assustado, me atrapalhei com a embreagem e em seguida senti um tranco violento, o carro morreu e alguém acertou a traseira do Uno.

Atordoado, sem entender o que estava acontecendo, voltei-me para o banco do carona e não só a ouvi como dessa vez a vi, a mulher do outdoor do Corpus Motel, linda, olhos cintilantes e voz doce, ela pedia: 

-- Estou com frio – ela falava com os braços recolhidos sobre os seios. 

Num gesto automático, fechei as janelas, travei as portas do carro e liguei o pisca-alerta.

Por alguns momentos, tremi excitado observando o seu corpo seminu esplendoroso, materializado bem próximo do meu.

Nisso o trânsito voltou a andar e os ruídos de buzinas junto com palavrões dirigidos contra mim soavam cada vez mais insistentemente, tentei ligar o motor, não consegui, o motor tinha afogado.

Então, alguém começou a socar o vidro lateral raivoso, só então lembrei que estava parado no meio de uma avenida supermovimentada atrapalhando o trânsito.

O embaçamento dos vidros não permitia que eu tivesse uma visão clara de quem era o sujeito que socava o carro, mas era evidente que ele estava furioso. Entendi que deveria tentar conversar e acalmar o sujeito. Mas quando me dispus a abrir a porta do uninho, minha alucinação reclamou docemente:

-- Por favor, não abre, estou com muito frio! 

Diante daquele impasse, a mulher dos meus sonhos materializada ali com toda sua sensualidade reclamando de frio, por outro lado, alguem raivoso chutando o carro que ainda tinha umas cinquenta e nove prestações à pagar. Tive que tomar uma decisão.

Ofereci a velha jaqueta que sempre trazia no banco do carona para minha alucinação que imediatamente se cobriu e sai para ter uma conversa com o sujeito raivoso.

Depois de uma conversa tensa, consegui me entender com o cara que amassara a traseira do meu 1.0, não querendo perder tempo com argumentações sobre a responsabilidade da batida, assumi o prejuízo do estrago e debaixo da chuva que caía incessante, ouvindo os xingamentos dos outros motoristas, com muito esforço empurrei o velho Uno para a lateral da avenida desobstruindo o trânsito.

Encharcado e esgotado me joguei no interior do veículo esquecido de quem estava nele, minha exuberante alucinação.

Por um tempo mantive-me de olhos fechados tentando não pensar em nada, apenas me aquecer. Mas, não demorou muito meus olhos focaram no retrovisor que mostrava minha alucinação envolta com a velha jaqueta no banco traseiro, fui hipnotizado.

Acredito que o encantamento daquela visão me tirou do ar, pois quando voltei do que parecia um sonho, percebi que o tapetão do Itararé estava completamente vazio e a tempestade fora substituída por uma noite com um céu enluarado e pontilhado de estrelas.

Buscando fugir a tentação daquela maravilhosa visão, tentei ignorar a mulher acomodada no banco traseiro, encará-la como uma alucinação, ir embora e abandoná-la ali.

Mas foi impossível, ela, seu perfume, seus gestos seu corpo excitavam-me. Com os olhos fechados e desesperado, roguei em pensamento que aquela alucinação passasse que ela desaparecesse.

Não adiantou, ela não só continuou acomodada no banco traseiro do meu velho carro como pediu:

-- Por favor, conversa comigo!

Continuei calado, não queria responder a uma alucinação, seria aceitar a loucura. Contudo, num olhar de soslaio vi que minha louca e bela imaginação, olhos castanhos claros, lindos, estavam marejados. Não resisti:

-- Por que você está chorando?

Rispidamente, falei voltado para o para-brisa, não queria olhar para ela diretamente, falei como se estivesse pensando alto, pra mim mesmo, coisa típica de velho esclerosado.

Então, ela abriu seu sorriso, um, lindo e contagiante sorriso. Impossível, eu não me apaixonar por aquela maravilhosa alucinação, apenas seu sorriso valia o risco de entregar-me à demência. E ela respondeu:

-- É que estou aqui somente por sua causa e...

E eu a interrompi incomodado.

-- É lógico que é por minha causa, você é fruto de minha mente perturbada, da minha imaginação!

Primeiro ela demonstrou não ter compreendido minha resposta, mas em seguida, como se tivesse descoberto algo, escancarando ainda mais o sorriso completou:

-- Não! Não é nada disso – ela se movimentou no banco, a velha jaqueta escorregou e parte de seu escultural corpo ficou insinuantemente exposto. E, sem se dar conta da seminudez, com naturalidade e empolgada continuou – não sou uma miragem, uma alucinação, sou uma mulher comum de carne e osso – esticou o braço em minha direção, tocando em meu ombro esquerdo.

Ainda ríspido e falando para o para-brisa como um robô, retruquei:

-- Sei! Você materializou-se dentro deste carro do nada, como naquela série de ficção, o marciano orelhudo fala “dois para subir”, e pluft, cá está você. Nada mais normal, coisa comum, isso acontece todos os dias – completei ironizando.

Puxando meu braço, ela pegou minha mão esquerda, entrelaçou seus delicados dedos nos meus, não pude deixar de me emocionar e me deixar levar pelo seu toque, e séria, ela completou:

-- Eu não sei o que aconteceu. Trabalho como modelo e fui contratada por um escritório de propaganda para fazer algumas fotos para uma campanha publicitária e foi a partir dessa época que os sonhos se tornaram frequentes – ela se desenlaçou de minha mão e se calou.

Confuso e desejoso de novamente sentir o toque de sua delicada pele voltei-me diretamente a ela perguntei:

-- Sonhos? Que sonhos?

Com seus olhos índigo e sua boca de lábios bem delineados, ela fitou-me satisfeita e continuou 

-- Era sempre o mesmo sonho, eu ficava parada num lugar alto, sobre uma avenida junto a um semáforo e abaixo os carros passavam em velocidade, e quando o semáforo ficava vermelho os carros paravam e alguns motoristas voltavam-se com olhares maliciosos para mim, eu me sentia muito incomodada e acordava do sonho. 

Deixando-me levar por aquela deliciosa sensação de estar em meio a um sonho bom e não querendo acordar, insisti:

-- Certo, mas e daí?

-- Acontece que havia alguém que me olhava e eu não me envergonhava, então o sonho continuava até o semáforo mudar pro verde e esse alguém seguir adiante e somente então eu acordava.

E, agora ruborizada, como se tivesse vergonha de confessar algo, minha alucinação se calou. Intrigado, eu novamente insisti: 

-- Mas, e daí? O que isso tem a ver comigo ou com essa situação?

-- Acontece que era você quem fazia o meu sonho seguir, eu não me envergonhava quando você me olhava. Não sei por que, mas eu sentia que você me olhava diferente. Você não olhava para o meu corpo, você olhava para os meus olhos, era diferente, então eu sentia que você pensava em mim. E eu acho que o que você pensava era algo que eu compreendia, e até gostava. Então eu passei a desejar aqueles sonhos, eu esperava ansiosamente por eles e passei a querer conhecer e estar com você. Foi então que isso aconteceu, eu sonhei e, não sei como, quando acordei eu estava aqui ao seu lado. Como você pode ver, desde algum tempo, eu queria estar aqui, e não quero ficar preocupada tentando saber como isso aconteceu, apenas sei que gosto de estar aqui.

Ela continuou com os dedos entrelaçados nos meus, eu gostei muito do que ouvi, gostei mais ainda de sentir seu toque, tive vontade de pular para o banco traseiro e abraçá-la, mas o medo e a vergonha não deixaram, fiz um grande esforço para manter uma postura séria e retruquei:

-- Nada mais revelador, você querer estar aqui neste momento, isso soa a confissão. Somente minha mente abalada, sabe lá Deus por qual substância tóxica, poderia criar um ente que desejasse estar aqui, comigo, vivendo esta merda de segunda-feira encrencada.

Ato contínuo, desvencilhei-me do toque de seus dedos e levei as mãos ao rosto, tapei os olhos em desespero, e gritei para mim mesmo 

-- Merda de vida!

O silêncio que se seguiu ao meu gesto incomodou-me, logo senti o bafejar de um ar frio, ao abrir os olhos, vi que minha alucinação havia saído do carro. Por um instante, extasiado pude mirar integralmente e por outro angulo o corpo perfeito, demarcado apenas pelo insinuante lingerie, daquela linda mulher. Ela afastava-se claudicante pela calçada esburacada e úmida ainda, estava descalça. Sua pele branca refletia em azul cintilante o brilho da lua cheia que se derramava sobre ela. Eu não resisti e corri até alcançá-la:

-- Espera!

Cobri seu corpo com a velha jaqueta, ela sorriu timidamente, agasalhou-se e continuou caminhando com dificuldades. Eu a acompanhei e então, sem jeito, falei:

-- Desculpe, eu não queria machucar você. O problema é comigo mesmo, eu é que estou atordoado, não sei mais o que fazer, o que pensar, as coisas estão dando errado, quero dizer, as coisas sempre deram errado pra mim e, de repente, você...- nós paramos, ela me olhou com um olhar que me desarmou completamente.

-- Eu! O que tem, eu?

-- Você é um sonho que eu sonho, um louco desejo, um sonho adolescente que envelheceu comigo.

Então, minha linda alucinação parou e ficamos de frente um pro outro, ela aproximou seu corpo junto ao meu, estava com frio, sua pele arrepiada denunciava isso. Nossos rostos ficaram tão próximos que eu conseguia sentir o hálito de chiclete de hortelã de sua boca entreaberta. 

Inseguro e excitado, cruzei meus braços sobre ombro dela e a apertei delicadamente contra mim, queria aquecê-la, meu corpo todo estava pegando fogo. Ficamos os dois, eu e minha alucinação, parados no calçadão deserto, grudados um ao outro olhando para o mar, compulsivamente, continuei a falar:

-- Saiba, passo todos os dias por essa avenida, mas nunca voltei minha atenção para a praia, bonita ela – fiz um gesto e completei - também, ao retornar já de noite, nunca percebi o brilho dessa lua, lindo também.

Subitamente fui tomado por uma sensação de alívio, algo mágico, todo o resto tinha deixado de ter importância, naquele momento somente existiam eu, a praia, a lua, o céu as estrelas e lógico minha linda alucinação.

Ela que, além de eu ver, me embriagava com seu aroma e me aquecia com o calor morno do seu corpo macio quase que encaixado no meu, tudo era nada.

Foi como uma viagem, viagem daquelas, alucinante e boa.

Foi então que aconteceu, enquanto falava, ainda como se falasse para mim mesmo, olhando para o mar, senti o toque delicado das mãos dela sobre meu rosto, ela aproximou-se, o hálito quente de chiclete de hortelã ficou mais forte, sua boca se abriu, primeiro aconteceu um leve roçar, em seguida seus lábios carnudos abriram-se e eu, louco, mergulhei dentro dela e nessa hora meus olhos se ofuscaram com o brilho do flash.

...

Desde então, aqui no alto, eu fico observando o ir e vir dos veículos ao longo do tapetão da Itararé, é um para e segue eterno e monótono. Ao longo do dia sou bombardeado por olhares, uns dissimulados, outros cansados, que reclamam pelo sinal verde.

Entretanto, meu coração de papel passou a bater excitado desde que uma garota de cabelos castanhos curtos para o seu Clio desbotado no semáforo junto a mim.

O tempo que dura o vermelho do sinal, ela fixa seu olhar no meu. Mas, quando o semáforo muda pro verde ela acelera e segue seu caminho enquanto eu, fico pregado nesse outdoor.




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