O Tigre Branco: uma alegoria da miséria humana.


Todas as vezes que acesso o Netflix, sou bombardeado com cartazes oferecidos sugerindo os mais variados títulos e destacando aqueles que estão no “top” dos mais assistidos. Invariavelmente, rejeito a sugestão e me ponho a buscar algo como filmes iranianos, argentinos (gosto muito destes), chineses, japoneses e russos, as vezes refino minha busca utilizando nomes de diretores de minha preferência (infelizmente a Netflix não cultua os diretores de minha preferência como Almodóvar) ou gêneros que me interessam e assim vou adestrando o algoritmo da plataforma. A maior parte das vezes, abandono a pesquisa sem encontrar algo interessante, desligo a tv e tento fazer algo mais útil, como escrever essas coisas por exemplo.

Nessa minha busca por algo que atendesse meu exótico apelo, durante o período de quarentena encontrei uma série turca chamada “Ressurreição” que, por interesse histórico, resolvi assistir. Ocorre que essa série está dividida em cinco temporadas e cada temporada é composta, em média, por cem capítulos. E, como não gosto desse negócio de maratonar, quero dizer, assisto normalmente um capítulo por dia, quando muito dois, é possível concluir que provavelmente somente chegarei ao fim de “Ressurreição” depois da segunda dose da vacina, ou seja, depois de já ter virado jacaré.

Digo tudo isso porque, nesse momento anterior a premiação da academia de Hollywood, o Oscar, resolvi assistir alguns dos indicados para premiação disponíveis na Netflix, como o “Mank” e “Os Sete de Chicago”. Acontece que o intrometido algoritmo captou essa minha predisposição e tascou como sugestão “O Tigre Branco”, uma produção indiana.

Ressabiado, não sou muito fã de “Bollywood”, por duas vezes resisti, até que me deixei levar. Confesso que estou grato por tal intrometida sugestão, o filme me surpreendeu. Honesto, bem dirigido, atuações ótimas, roteiro equilibrado e com substância. Recomendo.

Terminada a fita, satisfeito, busquei mais informações sobre a produção, fui ao site “Adoro Cinema” e obtive os dados técnicos de praxe e mais, diz lá que o filme é baseado num “Best Sellers”, ou seja, num livro bem conhecido, mas que não li, pois ainda não está em domínio público, então não dá para baixar gratuitamente (contenção de despesas em tempos pandêmicos). E, por fim, completei minha pesquisa lendo algumas resenhas. Como o filme tem indicação para o Oscar e é uma produção Netflix, encontrei muitas na net.

Antecipadamente, esclareço que não pretendo fazer uma crítica, pois não tenho autoridade para isso e, muito menos, tenho a intenção de escrever uma resenha desse filme, muitos já o fizeram. Minha intenção está relacionada a reflexões que “O Tigre Branco” me trouxe. Coisas como a linguagem cênica, algo que não foi abordado nas resenhas e críticas que li. É sobre isso que pretendo discorrer.

Logo de início, chamou minha atenção a relação da técnica vibrante de uma câmera em movimento tenso, buscando alcançar os planos em ângulos improváveis, outra coisa, o corte logo na preliminar do filme, com um flash Back e a metáfora dos frangos engaiolados e angustiados ante a visão da morte certa nas mãos sanguinolentas do açougueiro. Essa composição, movimento de câmera, planos tensos e os frangos angustiados pela proximidade da morte certa me remeteu ao clássico, (clássico pelo menos para mim), “Cidade de Deus” dos diretores Fernando Meirelles e Kátia Lund. Tais sequências, acredito, têm identificação com o plano sequência magistral e inicial do longa brasileiro, e o corte para um flash Back quando o protagonista se vê entre um bando armado e um galo em fuga.

Viajando ainda mais nas minhas especulações, nos recortes de planos curtos passando rápido e retratando a miséria e miserável vida da população indiana com uma narrativa encadeada de forma irônica, identifiquei uma relação com outro clássico nacional (este consagrado), o “curta” gaúcho “Ilha das Flores” do diretor Jorge Furtado. Apostaria dez cruzados que o diretor indiano do “O Tigre Branco”, Ramin Bahrani, é, pelo menos, um admirador da tão escorraçada produção cinematográfica brasileira. E, por outro lado, posso também concluir que a miséria tem por si uma linguagem alegórica própria.

Mas, além dessas especulações sobre a linguagem cênica da fita indiana, outra elucubração que me veio foi com relação as mudanças dos filtros de câmera que quase saturam as cores em determinados planos, ou ainda, o esfumaçamento em tons azulado noutros. Por tudo isso inferi que a técnica cênica adotada pelo diretor de fotografia está diretamente relacionada à técnica pictórica clássica das artes plásticas: o Impressionismo. E, nessa minha rápida pesquisa, não me surpreendi quando vi que assina como diretor de fotografia o italiano Paolo Carnera, um italiano que, com toda certeza, é herdeiro, ou pelo menos deu uns tragos na fonte do Neorrealismo italiano que, por sua vez, tem intima relação com o Cinema Novo tupiniquim.

E, por essas referências, me atrevo a inferir, (de forma um tanto irresponsável, admito), que “O Tigre Branco”, por todas suas referências, não é uma crítica ou denúncia ao processo de ocidentalização vivido no subcontinente indiano, como afirmam muitos de seus resenhistas. Acredito que essa produção, não sei se intencional ou não intencionalmente, vai mais além. Diria que “O Tigre Branco” é, por sua temática, uma alegoria da miséria humana e, por conta de sua estética, ele se enquadra como uma obra “impressionista”.

Entendendo que estavam esgotados os títulos que pudessem chamar a minha atenção, resolvi retornar à série turca, afinal tenho uns trezentos capítulos pela frente. Mas não é que o tal algoritmo enxerido me surpreendeu novamente e de forma oferecida me tascou. “CRIP Camp, Revolução Pela Inclusão”. Uma bela porrada na minha pandêmica alienação, mas isso é uma outra história.

Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Olá. A paleta de cores usadas neste filme são como marcações do enredo. Interessante a percepção que não trata somente as mazelas Indianas, mas sim do ser humano, pois o vemos em todos os lugares. Grato pelo texto. Forte abraço

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