Véspera de Natal
Numa véspera de Natal minha avó Maria morreu.
Acredito que a véspera de
Natal não é um bom dia para se morrer, considerando que exista algum dia
propicio para morrer.
Lembro bem dessa véspera de Natal, eu estava trabalhando e lá pelas tantas, no meio da tarde, o supervisor veio até mim, cabisbaixo e depois de se enrolar com um discurso meio confuso, foi ao ponto.
-- Ligaram da Santa Casa informando que tua vó faleceu.
Espantosamente, apesar de me conhecer pouco e não ter a menor ideia de
quem era minha vó, o coitado desatou a chorar. Depois de consolar esse meu
chefe, gastei um tempo razoável convencendo o sujeito de que não queria ser
dispensado do trabalho, que preferia cumprir o turno normalmente.
-- Mas, é tua vó!
-- Por isso mesmo, foi ela quem me criou e me fez assim. Seguinte, aprendi
com minha vó Maria que o trabalho além ser uma forma digna de levar a vida também ajuda a gente esquecer das coisas ruins, os maus pensamentos.
Falei sem acreditar muito no que dizia e completei meu turno.
Naquela noite de véspera de Natal e morte, resolvi celebrar a tristeza de
perder minha avó Maria, considerando também que tristeza se celebra. Decidi ir
pra zona.
No trajeto em direção ao centro cruzei com um cenário que alegoricamente
expressava bem a contradição daquele início de noite, sob os enfeites coloridos
de anjinhos sorridentes que decoravam a rua anunciando o Natal, data que simboliza um nascimento, acompanhei da janela do ônibus uma fila
de meia dúzia de veículos seguindo as luzes piscantes dum carro funerário, representação real da morte.
Quando cheguei no centro, não fui pra General Câmara onde o 411 e o 275
eram endereços dos mais afamados e animados puteiros da cidade, preferi os decadentes e baratinhos hotéis da
Amador Bueno, talvez porque quisesse me punir, talvez porque não tivesse bala
na agulha, as putas da General cobram mais, além de serem mais atraentes, carregavam a
grife de seus famosos puteiros.
Outra coisa, a General Câmara era o point da zona e a agitação das
pessoas, homens e mulheres circulando por suas calçadas exalando excitação pelos
poros, somada aos neons coloridos e cintilantes que enfeitavam as fachadas das
boates e dos Bares transformavam suas noites em eternos Natais. E, naquela
véspera de Natal, eu não estava com cabeça boa pra festa.
Lembro que a noite daquele 24 de dezembro chovia uma chuvinha fria e triste, como deve ser um dia de morte e como, para muitos, são tristes também as vésperas de Natal.
Então, no 44 da Amador Bueno, num hotelzinho decadente que oferecia toalhinhas higiênicas de brinde aos hóspedes, eu e uma mulher de cabelos, olhos e boca exageradamente pintados, que se protegia da chuva embaixo duma marquise e atendeu ao meu sinal, nos aboletamos num quartinho com luz fraca, mobília barata, cortinas descoradas e um sufocante cheiro de mofo.
Mal nos instalamos, a mulher começou a tirar a roupa e pude ver que ela era jovem ainda, mas com o rosto marcado por rugas precoces e o corpo gasto com manchas e algumas cicatrizes. Ela era jovem na idade, mas parecia já ter vivido uma vida.
Não demorou muito e
aconteceu o que, acredito, sempre acontece em noites como essas de véspera de
Natal quando duas almas tristes e perdidas se encontram, elas compartilham seus
dramas, ou seja, esquecem do corpo e tratam do espirito.
Naquela noite de véspera de Natal, quando o pipocar tímido de alguns fogos anunciando que já era Natal superou o ruído melancólico da chuva batendo na janela do pequeno e mofado quarto de
hotel, eu e minha companheira choramos abraçados e cumplices, ela, por sua desgraçada vida já quase toda vivida, eu por minha vó Maria morta.
Véspera de Natal não é um bom dia para se morrer, considerando que exista um dia propicio pra isso. Mas numa véspera de Natal velei a morte da pessoa que mais gostei na vida num pulgueiro do 44 da Amador Bueno, véspera de Natal inesquecível aquela.
Uma história um tanto... agridoce, talvez. Mas com o elegante toque de um baita contador de histórias! Parabéns, Bira!! :D
ResponderExcluirOpa, obrigado Sanford.
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