Barbies e Alice
Conheci Gercilene no baile do Banespa, com jeitinho de boneca ela me encantou, gostava até do nome dela "Gercilene", pois me lembrava do doce aroma do sabonete rosa da Gessy.
Gercilene era delicada como um botão de rosa, mas seu aroma era de Patchouli e eu era louco por ela.
O Banespa ficava na esquina do Canal Dois com a Euclides da Cunha, os bailes de sábado eram freqüentados pela moçada do Marquês de São Vicente. Eu era veterano, no baile estava sempre presente e no Marquês já havia levado duas bombas e me encaminhava para a terceira.
Frequentemente, não tinha grana pra pagar a entrada, por isso sempre pulava o muro do clube, um casarão que fazia divisa com a garagem dum prédio na Bernadino de campos, e mesmo quando estava abonado preferia economizar pra garantir a domingueira do Sírio, no Sírio só pagando, lá não tinha muro.
Foi num desses sábados que conheci Gercilene, eu tinha acabado de deixar o gramado que margeava o muro dos fundos do clube e tentava limpar a barra do macacão jeans, sujo com a grama molhada, quando ela apareceu. Flagrado, fiquei sem jeito, mas o sorriso brilhante dela valeu por aquela noite, eu me apaixonei.
Gercilene não estudava no Marquês, ela vinha do fim do mundo toda arrumadinha somente por causa do Antoninho, o cara do som. Hoje, acredito que ele seria chamado de D.J. e certamente não se apresentaria como “Antoninho”.
Ocorre que, além de ser o dono da aparelhagem de som, Antoninho era filho do dono da padaria Santa Luzia no Centro e tinha um fusca rebaixado com tala larga e rodas de magnésio. O sujeito, um escroto, se aproveitava do deslumbramento de Gercilene, submissa, ela ficava parada junto à porta da sala do som a espera do cara, muitas vezes ele saía, mas não lhe dava atenção até que lá pelas tantas rolava uma seleção de lentas, eles dançavam duas ou três músicas e depois iam para a sala do som e acabou, não saiam mais. Remoendo de inveja e raiva, eu ia embora, normalmente curtia minha bronca no forró do Miguel da Capela na Constituição, depois das três eles deixavam entrar de graça.
O baile do Banespa começava por volta das dez horas e terminava entre duas e três da manhã, dependia da empolgação do pessoal. Nesse tempo seguiam-se seleções de música lentas, de rock e de samba rock. Péssimo dançarino acostumei a tomar "tábuas" na seleção de lentas, mas quando rolava rock, eu pulava feito um maluco no meio do salão. Geralmente a pauleira começava com "Smoke on the Water" do "Deep Purple" e a coisa esquentava com o "Black Sabbath". O lamento gutural do vocalista, o "Ozzi Osborne" entoando "Paranoid" tinha tudo a ver comigo e com o bando que me acompanhava naquela agitação. Mas, a coisa pegava fogo mesmo era com "Alice Cooper", a gente cantava quase todas do “Billion Dollar Babes”. A turma tinha assistido ao show da banda em São Paulo e voltou maravilhada com a performance dos caras. Eu não fui, pois, pra variar, não tinha grana. Mas ouvi tanto sobre o show que era como se estivesse junto com a molecada no Anhembi.
Por ficar a maior parte do baile atento à prontidão dócil de Gercilene junto à porta da sala de som, percebi que o Antoninho reservava pra ela a seleção do Bee Gees. Bastava rolar as vozes afinadinhas dos irmãos Gibb’s pro escroto deixar seu esconderijo todo cheio de si e arrastar minha boneca Barbie pro meio do salão. Acho que isso explica porque eu odeio o "Bee Gees".
No começo, minha relação com Gercilene não passava de uma troca de olhar e sorrisos tímidos. Mas, não demorou e ela percebeu que eu era caído por ela. Até que, num sábado chuvoso e frio fui surpreendido, pouco antes do rif introdutório do Deep Purple ecoar, senti sua mão delicada me puxar pro meio do salão. Pulei como nunca, extasiado por ter a garota que me encantava, alegre e exuberante dançando à minha frente até que lá pelas tantas uma balada acústica suave inundou o salão, o tio Alice Cooper atendeu minhas preces. Enquanto a rapaziada suada abandonava o salão, eu puxei Gercilene que mansamente se deixou abraçar e no curto instante em que dançamos colados pude admirar bem de perto seus olhos cor de mel, sua boca pequena de lábios cor-de-rosa com brilho molhado e, principalmente, senti seu corpo quente e macio grudado ao meu. A luz negra incidia sobre a blusa branca demarcando com um halo brilhante seus pequenos seios e isso somado ao delicado aroma de pachtouli que evolava de sua pele me embriagava como um doce e bom licor.
Durou pouco minha alegria, subitamente senti o corpo da minha Boneca Barbie se descolar do meu e de seu rostinho cor-de-rosa vi brotar lágrimas que brilhavam como diamantes tristes refletidos na luz negra. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, Gercilene me largou plantado no salão e correu para a porta de saída do clube.
Demorou um tanto, até que entendi o que tinha acontecido. Acontece que o babaca do Antoninho estava dando o maior amasso numa lourinha de minissaia num canto do salão e Gercilene viu quando ele arrastou a garota pra dentro da maldita sala de som.
Rápido alcancei Gercilene, ela seguia pela calçada do Canal Dois em direção à praia, como não sabia o que dizer, segui calado ao seu lado. Uma garoa bem fina e gelada grudava na pele, percebi que ela sentia frio e me amaldiçoei por não ter um agasalho, cogitei abraçá-la, não tive coragem.
Na avenida da praia paramos num ponto de ônibus, calados. Em silêncio, enquanto aguardávamos o circular, ecoava na minha cabeça a balada do Alice Cooper que me permitiu sentir colado a mim aquela garota que eu tanto desejava: “…She cries alone at night to often…Only women bleed…”.
Depois de um tempo que não sei quanto durou, um ônibus parou, Gercilene me beijou delicadamente com seus lábios molhados e desapareceu no circular. Angustiado, eu soube pelo gosto salgado daquele beijo que ela nunca seria minha garota. Naquela noite não fui pro Miguel da Capela, preferi ficar observando a escuridão fria e ruidosa do mar. Minha Barbie nunca mais voltou do fim do mundo.
Hoje vi Gercilene, vestida de Barbie, ela aguardava alguém na esquina do Canal Cinco. Ofegante, eu retornava da corrida matinal quando a vi. Uma maquiagem grotesca delineava seu olhar distante. Parada na calçada minha boneca Barbie estava de minissaia e botinhas, mas o lusco fusco daquele alvorecer refletia um rostinho já gasto. Justamente no momento em que passava por ela sem ser notado, um carro parou, eu me virei, achei que poderia ser o fusca do Antoninho, não era, segui em frente. Sentindo os primeiros raios de um sol morno incomodar meus olhos, subitamente a balada do tio Alice passou a ecoar em minha mente, “…She cries alone at night to often…Only women bleed…”.
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