A Respeito de Lennon

 


Estava na escola quando recebi esse "zap" do Bel, meu filho.

Escrevo isso porque assistindo algumas etapas da WSL, tive oportunidade de ver as celebridades do mundo do surfe deslizarem suavemente no interior de grandes ondas, algumas em formato de  tubos perfeitos. 

Belas imagens intercaladas de aulas de bom-mocismo dadas pelos surfistas nas alegres e descontraídas entrevistas produzidas pela  rede detentora dos  milionários direitos de divulgação. 

Daí, lembrei do Lennon, do João Lennon.

Ocorre que há mais de cinquenta anos, por conta de ter de trabalhar, transferi minha matrícula para o período noturno do Ginásio Estadual do Gonzaga o G.E.G ( a gente chamava carinhosamente de "Jegue"), que ocupou o lugar do antigo Grupo Escolar Marquês de São Vicente, atual E.E. Marquês de São Vicente. 

O prédio do Jegue ficava na Bernardino de Campos, no Canal Dois a duas quadras da praia e consistia numa construção baixa com salas amplas e bem arejadas por janelões voltados para a avenida. 

Apesar dessa maravilhosa e acolhedora arquitetura, eu e uma tropa de alunos preferíamos o lado de fora. Adorávamos ficar despachadamente acomodados na mureta do canal em grupinhos e dali nos deliciávamos com a brisa vinda da praia enquanto as aulas transcorriam no interior da escola, frequentemente a gente bolava aula.

Mas, por que lembrar dessa época, trazer de volta o Jegue e, principalmente, por que falar sobre o João Lennon? 

Não tenho fixação pelo passado, sou péssimo fisionomista e desconfio muito de minha memória, pouco ou nada guardo dos acontecimentos que vivenciei e, principalmente, das pessoas que conheci na escola. 

Porém, tem horas que um aroma, um som, uma cena e até uma palavra pode desencadear lembranças e aí minha mente reage, algo como as "madeleines" de Proust, pessoas ou coisas se apresentam, mesmo aquelas que não se mostraram de grande importância na época, mas que por um motivo ou outro abrigou-se na escuridão duma cabeça lesada como a minha.

Pois então, esse foi o caso, acompanhando a etapa da WSL lembrei do Lennon, do João Lennon. 

Lennon não era do nosso grupo. 

Magro com cabelos longos, lisos e parafinados, jeitinho de anjo, o João Lennon tirava onda de surfista.

Há cinquenta anos, os surfistas formavam um grupo a parte e fácil de ser identificado. Seus membros, além dos cabelos parafinados, comumente tinham o rosto emplastrados com pasta d'água ou creme nívea.

Outra coisa que identificava os surfistas era a postura, normalmente eles se prostravam em pequenos círculos falando de forma monossilábica, todos com cara de paisagem exibindo um sorriso bobo e tinham um tique, ficar enrolando uma mexa de cabelo atrás da orelha usando o polegar e o anular. Impossível não reconhecer os figuras.

Esse era o caso do João Lennon que também se destacava por suas vestes, calça Lee de boca larga, desbotada e barra desfiada. 

Nosso Lennon andava com passinhos miúdos arrastando preguiçosamente um chinelinho de tira de couro, daqueles que a gente comprava dos hippies que no verão faziam ponto na calçada em frente ao antigo prédio do Clube Sirio Libanês no Gonzaga. 

E, frio ou calor, o João Lennon sempre usava uma gandola verde oliva já bem gasta comprada dum reco que servira no Segundo Becê.

Naquela época, nós frequentávamos o ginásio no período noturno por dois motivos, um por ter que trabalhar durante o dia, outro por ter tomado bombas no período regular e não encontrar vagas nos períodos diurnos. Meu caso era a combinação desses dois.

Mas os surfistas eram um caso à parte, eles escolhiam o horário noturno porque passavam praticamente o dia todo na praia, eram conhecidos como "ratos de praia". Não sei se esse era o caso do João Lennon.

Francamente, acho que nosso Lennon não tinha bala na agulha pra comprar uma prancha de surfe, era muito caro. 

Não importa, para nós o João Lennon era surfista.

Ah!! faltou dizer que o nosso surfista João, além das vestes , dos cabelos lisos escorridos, repartidos ao meio e e o rostinho de anjo, sempre usava um oclinho de lente azul redonda, era a cara do outro.

Apesar de ter voltado a lembrar do João Lennon assistindo uma etapa da WSL, não foi o fato João Lennon tirar onda de surfista que o fez se acomodar num recanto meio escondido de minha memória. 

Acontece que há cinquenta e poucos anos eu e grande parte da turma levamos bomba em matemática na terceira série do ginásio. A gente não conseguia entender o que era e pra que serviam as equações do primeiro e principalmente do segundo grau. 

A professora Ana de Matemática era uma jovem senhora. Não era bonita, mas acho que tambem não era feia, lembro apenas que ela era grande e desengonçada, usava um óculo de aro grosso e passava a maior parte da aula sentada, levantava apenas pra rabiscar na lousa aquelas malditas  e ininteligíveis equações.

Então, por tal descrição poderia se concluir que nossa turma odiava a professora Ana. Mas, ao contrário, afirmo que nós tinhamos grande carinho por ela e isso por causa do nosso surfista, o João Lennon.

Explico, certa noite de céu estrelado, como de costume, o pessoal foi chegando e se acomodadando na mureta do canal. O sinal tocou e a turma continuou ali alegremente agraciada pela brisa marinha até que, no auge da boa conversa, o João Lennon botou o fichário debaixo do braço, deu um tchau e com seu passinho arrastado entrou na escola. Pouco depois, através dos janelões, vimos nosso surfista entrando na sala para a segunda aula, justamente a aula da professora Ana.

Espantados, não entedemos nada.

Então, naquela mesma noite, a professora Ana conquistou nossa afeição, pois na saída da aula, meio sem jeito, nosso surfista, o João Lennon, com sua carinha de anjo e vozinha anasalada confessou:

-- Eu sou apaixonado pela professora de Matemática!!! *


*Em tempo: João Lennon também levou bomba de Matemática.

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