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Milenarismo

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  Diz que o mundo vai se acabar. Ressabiado, vesti uma beca de linho branco com boca larga, botei uma camisa encarnada, calcei alpercata de couro polido, pinguei umas gotas de patchouli por trás dos abanos e cheirando aos anos setenta me mandei pras quebradas, azogueado fui pr’um baticum de louvação. O terreiro tava requisitado, só tinha entidade de presença. coisa muito da respeitosa. Os ebós eram de fartura e procedimento. Lá pelas tantas, depois dos ogans saudarem seus deuses, o coco levantou a poeira.  Com flores nos cabelos, as moças passaram a esvoaçar suas saias rodadas transformando o terreiro num jardim de rosas sem espinhos. Embriagado de ver tanta beleza e formosura, eu cai na roda e dancei feito um gira.  Passado outro tanto, perdido nesse roseiral me vi enganchado numa cigana com olhos de tigresa e lábios de mel, fiquei em torno dela parecendo um cometa desses que vai e que vem. Quando a lua se descambava lá pra trás da serra, eu e minha cigana com olhos de t...

Conto de Natal

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  Falando em tom de encerramento, completou o professor: ─ Do ponto de vista da Dialética hegeliana, o confronto entre as classes sociais trata-se dum fenômeno natural, entretanto do ponto de vista da dialética marxista, a luta de classes é determinada pelo sistema produtivo capitalista. Deixando a sala de aula e correndo pra pegar o último "Butantan-USP", Josiel, em seu estado natural, ou seja, de inconformismo, pensava: “burguesia do caralho, essa!”.  E esbaforido, conseguiu se imprensar no vagão metálico do Metro na estação Barra funda que o levaria até a estação Sé e dali, se tudo desse certo, conseguiria pegar a também última composição que o levaria até o Jabaquara e finalmente o “bacural” do Rápido Brasil para Santos. Passava das duas da manhã quando finalmente chegou na sobreposta do Macuco,, só depois do banho percebeu o bilhete na mesa da cozinha deixado pelo Otoniel, despachante aduaneiro e companheiro dos rachas na praia do Boqueirão: “Passa no escritório...

TROPICAOS

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I Do psicodélico à psicanalhice, do tropicalismo à tropicaretice, do elitismo estamental, ao achaque neoliberal, da estultice do mobral, ao analfabetismo funcional. Nesse espaço temporal,  empreendi uma viagem visceral, devaneio lúdico, transcendental. II Planei por Macondo de Arcadio,  dos Buendia Em voo de condor, trespassei montanhas, vi em garras de abutres,  uma cabeça decepada, numa guerra “Bolivária”, peleja bruta,  nada solidária. III Contemplei céus de diamantes com nuvens cor de rosa. No horizonte cósmico  me assaltou o brilho  d’um buraco negro pulsante  que tudo absorvia. um rabo de arco íris sibilante, chicote de chiclete  que resplandecia, enquanto o Sargento Pimenta  em cabeças mais afeitas , reluzia. IV Nesse campo invernal, num solo árido,  semitropical Uma chama iridescente ardia, alimentada com mel e ambrosia. Saciava deuses à revelia. V Sob um sol sonâmbulo,  sombrio, Embriagado com vinho de acácias Viajei na cor...

Querer

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Quero tua boca pra beijar, tuas curvas pra viajar, teu precipício pra me jogar.

Vício

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Quando a vista já se mostrava turva  e não me interessava mais a luz,  ofereci um bombom de gergelim a ela.  Fustigado pelo brilho adocicado de seu olhar,  meus olhos ficaram viciados em olhar pros olhos dela.

Janela

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  Da minha pequena janela, vejo um porto sem naus, uma mesquita sem muezzin,  um campanário sem cruz, uma noite sem lua, um céu sem estrelas. Dessa minha janela modesta, numa fresta, vejo um espelho,  e nele, o nada que me resta.

Correção

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  A primeira vez que a vi,  fui tocado.  O tempo passou,  vi-me apaixonado.  Quando ela se aproximava,  eu calava sufocado. Resolvi escrever o que sentia,  confessar minha paixão.  Professora, ela leu,  corrigiu e devolveu. Pensou que era uma redação!

Origem

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  Quando tratamos da origem das coisas, invariavelmente associamos o tema ao “início”, entretanto é importante destacar que analisar a “origem das coisas” não significa buscar saber simplesmente o começo, ou seja, quando começou, onde começou ou ainda quem começou. Ao estudar as origens de algo, fundamentalmente buscamos estabelecer os “princípios”, coisa muito diferente de simples “começos”. Em 1968, eu era um moleque meio desajustado, morava na casa de meus avós maternos na Divisa dos Tambores entre Santos e São Vicente. Nessa época, a coisa mais valiosa que possuía era um tanto de revistas e gibis usados que guardava numa caixa de madeira. Na época, garotos da minha idade viviam na rua jogando bola, empinando pipas ou fazendo outros tipos de brincadeiras. Entretanto, meus avós eram muito rigorosos, não me deixavam sair por nada, com isso meu mundo se resumia ao quintal da casa na rua Divisória, acho que este era e ainda é o nome da rua larga que separa as duas cidades, do ...

FOME

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  No passado, saciado com tua gordurosa presença, escolhia os nacos mais saborosos de ti. Refestelado de todos os teus cremes e açúcares, satisfazia-me com doses mínimas de teu caramelo. Esgotado de ti, inventava dietas. Hoje, esfomeado por tua ausência, sedento por tua falta, clamo por migalhas tuas, por gotas de ti, por restos teus.

CLIMA

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CÃES E RATOS

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 Priscilla era louca por cães, eu era louco por ela.  Inseguro e distante, eu admirava seus gestos ágeis de felina.  Priscilla adorava cães, mas tinha olhos e corpo de gata.  Um dia, Priscilla apareceu triste, com marcas vermelhas em seu belo corpo. Tímido, eu me aproximei e lhe dei um pequeno poodle de biscuit. Com seus olhos de gata, Priscilla sorriu.  Abanando o rabo, eu saltei como um vira lata bem alimentado. Priscilla era apaixonada por seu Pitbull, aquele que deixava seu lindo corpo de gata com vermelhas marcas. Um dia o pitbull apareceu rosnando e raivoso, assustada, Priscilla tentou fugir. Eu, rabo entre as pernas, corri de volta para minha toca. Retomei minha vidinha de rato

Dia dos Professores.2022

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  O grande professor que tive foi meu avô Antônio.  Sujeito sisudo, cabeça ovalada despida de cabelos, boca banguela, andar reto, caminhar duro e quase nenhuma fala.  Molequinho ainda, eu me acocorava ao lado de vô Antônio, entre nós um balaio de laranjas e o silêncio, lá se ia o balaio das laranjas, ficavam, eu, meu avô e o silêncio. O maior ensinamento que esse meu vô passou foi o fazer.  Vô Antônio era um faz tudo, homem de ação e econômico nas palavras. Todas as vezes que eu perguntava “como se faz?”, a resposta era curta e direta: “olhe e depois faça!”. Assim em silêncio ao lado do meu vô Antônio, aprendi que a palavra é tão valiosa que não pode ser gasta a toa. Aprendi também que quem fala demais dá bom dia a porta e que pode até chegar à Roma, mas se não souber o que fazer será jogado aos leões. Hoje, molequinho ainda, tenho orgulho de ser um pouco parecido com meu vô Antônio, pois não gosto de falar de pintura, gosto de pintar, não gosto de falar de Tea...